1.5 Transmissão e recepção do Timeu

1.5 Transmissão e recepção

No que respeita à tradição manuscrita, o texto do Timeu chegou até nós em excelentes condições de preservação. Além do manuscrito Parisinus 1807 (A) (uma das duas principais fontes textuais das obras de Platão), datado entre finais do século IX e princípios do século X da nossa Era, a recensio do diálogo conta também com um outro ramo de que são testemunho dois manuscritos de Viena: o Vindobonensis 21 (Y), que, apesar de datar já de finais do século XIV d.C., será uma cópia de um exemplar anterior ao século V d.C.; o Vindobonensis 54 (W), que, embora anterior a Y, granjeia de muito menos fiabilidade. Curiosamente, nem o Timeu nem o Crítias constam no manuscrito Bodleianus 39, a outra grande fonte textual das obras de Platão.

Quanto à tradição indireta, é de tal forma vasta e rica que se chega a confundir com a própria recepção do diálogo. Com efeito, desde os tempos da Academia Antiga até à Modernidade que o Timeu foi sendo alvo de interpretações, traduções e comentários contínuos.

Na Antiguidade Grega, o período mais profícuo em comentários à obra, o primeiro grande pensador a interessar-se pelo Timeu foi Xenócrates, o segundo sucessor da Academia, em c. 335 a.C. (que a dirigiu logo após Espeusipo, este que sucedera diretamente ao próprio Platão), o qual, segundo nos diz Proclo, orientou o seu discípulo Crantor na realização do primeiro comentário.

Mais tarde, já na Era Cristã, surge o comentário de Proclo (In Platonis Timaeum Comentarii) – o mais antigo de que dispomos – que, de certo modo, marca um ponto de viragem na interpretação do Timeu, na medida em que o aborda sob uma perspetiva marcadamente teológica e teleológica, principalmente na concepção do Demiurgo como a entidade una, eterna e transcendente que cria o mundo, que, mais tarde, haveria de fundamentar as leituras judaico-cristãs do diálogo, particularmente na identificação do Demiurgo com Deus. Houve também outros comentários que chegaram até nós apenas em estado fragmentário, como os de Porfírio e de Iâmblico, ou ainda outro que, simplesmente, se manteve anônimo – este, datado do século IV d.C., de cariz assumidamente estoico; ou mesmo um, de Plutarco, que apenas se ocupa da secção sobre a constituição da alma (De animae pro creatione in Timaeo). Quanto à versão para Latim, o Timeu foi traduzido parcialmente (27d-47b) logo no século I a.C. por Cícero, ao que parece com o intuito de incluir aquela secção num seu projeto pessoal de redigir um tratado cosmológico que, todavia, nunca chegou a fazer. Também parcialmente (até 53c) o traduziu Calcídio, e, provavelmente inspirado em Porfírio, também lhe dedicou um comentário (31c-53c), que redigiu à luz de critérios aristotélicos, centrando as suas atenções em aspetos como a eternidade ou o mundo do devir, e no qual abordou algumas questões de ordem teológica, como a possibilidade de coincidência entre daemones e anjos.

Ainda durante a Antiguidade, o diálogo exerceu grande influência na formação de alguns dos pensadores mais ilustres, não só nos platonistas nem somente nos filósofos. Inclusivamente o próprio Galeno demonstra um profundo conhecimento do diálogo e, além disso, recorre a alguns dos seus axiomas para redigir os seus tratados de Medicina; nas obras De placitis Hippocratis et Platonis e Quod animi mores isso é particularmente evidente, pois espelham as teorias, por exemplo, sobre a alimentação do corpo ou sobre a alma estabelecidas no texto de Platão; na astronomia, a dívida de Eudoxo e Calipo aos postulados do Timeu é também manifesta. No âmbito da Filosofia, a influência do Timeu assume contornos impossíveis de circunscrever neste contexto, pelo que daremos apenas alguns exemplos – aqueles que nos parecem ser os mais importantes. Começando, desde logo, por Aristóteles, poderíamos citar algumas das ligações pontuais que mantém com este diálogo, porém todas elas seriam insuficientes para ilustrar o papel que a obra desempenhou na própria estruturação do sistema filosófico aristotélico, particularmente na concepção de matéria que o Estagirita desenvolveu, a qual, em larga medida, se deve às linhas de orientação que encontrou neste diálogo do mestre. No quadro do Neoplatonismo, o Timeu exerceu também uma forte influência, de modo geral em todos os seus representantes, mas particularmente, e de modo mais evidente e importante, na obra de Plotino. Muitas das doutrinas que explora nas Enéades refletem claramente os axiomas mais importantes do Timeu, não sendo rara a possibilidade de identificar claras ligações intertextuais entre as duas obras; por exemplo, num tratado que dedica ao tempo e à eternidade (3.7), é perfeitamente evidente a presença quase palimpséstica da secção 37c-38c do texto de Platão. Mais tarde, já em Língua Latina, as mesmas concepções de tempo e eternidade, contudo, nessa altura, já mediadas por aquela secção das Enéades de Plotino, vão determinar as teorias de Boécio que, em Consolatio philosophiae, associa à eternidade os conceitos de transcendência, plenitude e inteligência divinas as quais haveriam de determinar o modo como o diálogo seria interpretado posteriormente.

Passando ao Período Medieval, convém, antes de mais, ter em conta que os textos de Platão estavam apenas acessíveis a partir de traduções latinas, que, além de muitas vezes serem parciais, contemplavam apenas uma pequena parte do corpus, a saber, Ménon, Fédon, Parmênides e Timeu; para além disso apenas existiam alguns meios adulterados pela pena de outros autores como comentários a determinadas secções ou simples referências – no caso particular do Timeu, o texto estava disponível apenas através das traduções de Cícero e Calcídio, ambas elas parciais, o que fez com que fosse somente conhecido até 53c.

É precisamente a Calcídio que se remete um comentário anônimo ao diálogo, datado já de 1363 e redigido no contexto acadêmico parisiense do século XIV, que evoca sobretudo os aspetos éticos e políticos, em grande medida para fundamentar a construção da moral cristã55. O aparecimento do texto integral, embora ainda na versão latina, terá que aguardar até 1484, ano em que Ficino publica a decisiva obra Platonis opera omnia, na qual inclui, além da tradução do Timeu, um anexo – o Compendium in Timaeum – que oscila entre comentário e resumo do diálogo, no qual tenta uma aproximação entre o platonismo e o cristianismo; um pouco à imagem de Agostinho de Hipona, porém de forma mais audaciosa, ao tentar restabelecer uma ligação entre o homem, o Universo e a transcendência divina, ao mesmo tempo que empreende a ruptura com algumas visões do meio acadêmico, na altura dominado pelas interpretações averroísto-aristotélicas. Além desta nova proposta de leitura que ensaia a síntese entre humano, cósmico e divino, o texto de Ficino potenciou o aparecimento das primeiras edições do texto no original grego que surgiram já em pleno século XVI: a princeps em 1513, na imprensa de Aldo Manúcio, em Veneza; uma outra, que se haveria de tornar canônica, em 1578, em Genebra, da autoria de Henri Estienne, cuja paginação ainda hoje é utilizada pelos estudiosos, inclusivamente pelos comentadores modernos.