2.2 Personagens

Excertos de “O Timeu de Platão: mito e texto”, por Rodolfo Pais Nunes Lopes

No Timeu participam quatro personagens, para além de uma outra que é referida logo na primeira frase do diálogo, mas da qual não resta qualquer notícia: Sócrates, Timeu, Hermócrates e Crítias. Quanto ao primeiro, que teria entre 40 a 45 anos à data dramática, pouco haverá a acrescentar aos milhares de páginas que têm sido escritas ao longo dos tempos, a não ser o pormenor que muito bem observou Vlastos acerca da evolução da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cânone platônico: o fato de Sócrates se interessar por filosofia natural, ou melhor, por ciências naturais, como a biologia, a física, a astronomia ou a química, o que não acontecia em fases anteriores; na fase média, por exemplo, os interesses científicos de Sócrates estavam limitados às ciências matemáticas, como é prova disso a República. No que respeita às restantes personagens, além da curiosidade de não participarem em mais nenhum diálogo de Platão, cumpre dizer algumas palavras.

Começando pelo protagonista, Timeu, cuja intervenção ocupa a grande maioria de todo o diálogo (desde 27c até ao fim, excluindo uma pequena intervenção de Sócrates em 29d), não há evidências concretas de que tenha realmente existido. Com efeito, todas as referências a este suposto filósofo pitagórico são posteriores a este diálogo, no qual se diz ser um abastado cidadão de Lócride, na Itália, tendo ali ocupado altos cargos na administração política e, por isso, recebido grandes louvores por parte dos habitantes. De fato, dada a probabilidade de o Timeu histórico não ter verdadeiramente existido, há autores que veem nele uma máscara para outra personalidade como Filístion, pelo fato de ser também natural de Lócride. Por outro lado, Cícero refere em Academica que Platão, quando foi pela primeira vez à Sicília, estadia durante a qual terá obtido grande parte dos seus conhecimentos sobre o Pitagorismo, conviveu muito de perto com Timeu de Lócride e também com Arquitas de Tarento. Se a existência do primeiro é duvidosa, quanto à do segundo não há quaisquer dúvidas: além de um político exemplar, Arquitas foi um matemático brilhante, responsável por descobertas importantíssimas como a duplicação do cubo, cuja autoria lhe é atribuída por Eudemo, e de ter sido mestre de ilustres matemáticos como o próprio Eudoxo, conforme atesta Diógenes Laércio. Por isso, há também opiniões segundo as quais Timeu representa Arquitas; contudo os dados disponíveis não permitam mais do que simples conjeturas. Por outro lado, este carácter fictício da personagem leva os estudiosos a considerar se Timeu não será um simples pseudônimo de Platão, como fora inicialmente proposto por Wilamowitz e mais tarde desenvolvido por Cornford, que sustentava esta argumentação com o fato de ser impossível apontar alguém daquela época que reunisse conhecimentos tão aprofundados sobre tantas áreas do saber.

Quanto a Crítias, personagem responsável por narrar o episódio da guerra que opôs Atenas à Atlântida (20e-26e) que, posteriormente, constituirá o assunto principal do diálogo que segue o Timeu e ao qual ele dá o nome, é, sem dúvida, a figura que levanta mais problemas de ordem histórica. A teoria tradicional, fundamentada por Proclo e seguida desde logo por Burnet, sustenta que se trata de um primo em segundo grau de Platão, 33 anos mais velho, que pertencera ao conselho oligárquico dos Trinta Tiranos. Ainda assim, em virtude de esta posição entrar em conflito com alguns dados que nos fornece o texto, como por exemplo o anacronismo que representa o fato de Crítias dizer que o seu bisavô fora contemporâneo e amigo de Sólon, que vivera cerca de 200 anos antes, ao mesmo tempo que refere que durante a sua infância as composições deste poeta eram uma novidade, levou a que Cornford adiantasse uma outra proposta que sugeria que este Crítias era sim o avô do Crítias dos Trinta Tiranos, portanto tio-avô de Platão. Porém, aqueles mesmos dados que fundamentaram esta posição serviram para reafirmar a validade da tradicional, como faz Rosenmeyer, pois o fato de os poemas de Sólon serem novidade para Crítias continuava a ser anacrônico; isto é, seja qual for a posição que prefiramos, nunca será a correta. Por outro lado, poderemos abordar a questão de outro modo e pensar, com Brisson, que este anacronismo foi propositado, justificado pelo fato de Platão querer, por um lado, estreitar um pouco mais a via de transmissão do relato de Sólon, ao suprimir uma etapa da linha genealógica, e, por outro lado, proporcionar ao relato um registo de atualidade somente atingível pelo Crítias dos Trinta Tiranos que participou na Guerra do Peloponeso e contribuiu para a guerra civil que se instalou em Atenas, cujo modelo é ilustrado pela guerra que narra no seu discurso. Em suma, a posição mais correta a tomar será admitir que é impossível determinar historicamente esta figura, tendo em conta os dados de que dispomos, e sobretudo que há uma clara não-coincidência entre o Crítias histórico e o Crítias dramático.

No que respeita a Hermócrates, o autor do suposto diálogo que estaria pensado para seguir o Crítias, mas que Platão nunca chegou a redigir, a sua participação no Timeu limita-se apenas a uma breve intervenção em que sugere a Crítias que conte a estória de Sólon. Quanto à sua existência histórica, ela é indiscutível e os dados que nos fornecem os autores antigos não têm sido objeto de discussão: diz Proclo que era um general natural da Sicília que derrotou os Atenienses numa expedição que fizeram àquela ilha (em c. 415 a.C.), e, segundo Tucídides, tratava-se de um homem de admirável inteligência e coragem além de muitíssimo experiente em assuntos militares.