Er (Trabattoni)

Para falarmos do destino da alma depois da morte e dos prémios e castigos que a esperam no além, Sócrates expõe o célebre mito de Er como encerramento, (614b-621d). Nesse mito são reconhecíveis três elementos principais: 1) uma descrição geográfica da terra e das suas partes (das quais não nos ocuparemos); 2) uma indicação dos prémios e castigos que esperam as almas depois da morte; 3) uma acentuação muito forte da liberdade humana, contra as éticas da sorte e do destino.

Platão imagina que Er, um homem valoroso originário da Panfília, tenha tido a oportunidade de ver o que acontece após a morte, para depois poder contar aos outros: os homens maus são punidos nas vísceras da terra por um período que equivale a dez vezes o período da vida humana (isto é, aproximadamente mil anos), enquanto os bons desfrutam de um destino contrário no céu e pelo mesmo período. Ao fim desse ciclo, todos os homens (exceto os cruéis que se mostrarem incuráveis) são reconduzidos a uma nova vida. Aqui é introduzido o segundo tema, o da liberdade: as vidas sucessivas não são atribuídas pelo destino, mas são escolhidas por cada alma. O único elemento deixado ao acaso é a ordem dos turnos na escolha, que são sorteados. Mas a incidência do acaso não é determinante, porque o número de vidas é maior do que o de almas, de modo que quem escolhe por último tem a possibilidade de receber uma vida, se não ótima, pelo menos não má.

O motivo pelo qual Platão planejou essa bizarra narrativa da escolha da vida futura aparece com clareza naquilo que Láquesis (umas das três moiras, presentes no mito) diz às almas que devem reencarnar: “Almas de efémera existência corpórea, inicia para vós outro período de geração mortal, prelúdio de nova morte. Não haverá um daimon para vos receber, mas sereis vós a escolher o daimon. O primeiro sorteado escolha primeiro a vida à qual estará irrevogavelmente ligado. A virtude não possui dono; na medida em que a honrem ou a prezem, cada um terá mais ou terá menos. A responsabilidade é de quem escolhe, o deus não é responsável” (617d-e).

Se observarmos bem, não é por acaso que, no último livro dΆ República, esse mito está aproximado de uma severa crítica à poesia. Não só porque com o mito de Er Platão fornece uma prova concreta de como deveria ser a poesia na cidade perfeita, mas também porque as razões do fado e do destino irrevogável, a trágica visão dos homens vítimas de uma sorte que os deuses escolheram para eles, eram lugares comuns sobre os quais a poesia insistira com particular frequência: sobretudo a poesia épica e trágica, contra a qual Platão dirige sua crítica em primeiro lugar.

A confiança na possibilidade de o homem construir seu próprio destino é o tema que torna a filosofia de Platão antitrágica por excelência. A República pretende demonstrar, em seu conjunto, que a virtude e a felicidade que dela deriva podem ser livremente alcançadas pelo homem. Mas não é tudo. Contra a hipótese, parcialmente confirmada pela tragédia que foi o destino dramático do Sócrates histórico, segundo a qual a felicidade seria acessível somente a homens excepcionais capazes de escapar do mundo e das suas seduções, A República quer provar que não somente é possível escolher o bem privado sem renunciar ao público, mas, sobretudo, que uma coisa não se dá sem a outra. Essa é a mensagem final d A República: a virtude e a felicidade do homem, também do indivíduo, passam necessariamente pela política, entendida em sentido lato como educação completa do homem, quer na dimensão pública, quer na privada. Dessa maneira, Platão pode fechar o grande diálogo dizendo que as condições que expusemos, se forem respeitadas, sem dúvida permitirão ao homem ser feliz (eu prattein), antes e após a morte.