Sócrates — Não concorda, o que também fará Cálicles, quero crer, quando examinar melhor a questão. Dize-me uma coisa: os que vivem bem e os que vivem mal, não te parece que se encontram em condições opostas?
Cálicles — Sem dúvida.
Sócrates — Ora, se eles se opõem entre si, necessariamente se acham nas mesmas relações que a saúde e a doença? Pois ninguém é são e doente ao mesmo tempo, nem se livra de uma só vez da saúde e da doença.
Cálicles — Que queres dizer com isso?
Sócrates — Toma a parte do corpo que quiseres e reflete. Quando alguém tem os olhos doentes, que sofre de oftalmia?
Cálicles — Como não?
Sócrates — Então, essa pessoa não pode ter os olhos ao mesmo tempo sãos e doentes.
Cálicles — De jeito algum.
Sócrates — E então? Quando se vir livre da oftalmia, ver-se-á também livre da saúde dos olhos, acabando por livrar-se de ambas?
Cálicles — De modo nenhum.
Sócrates — Fora espantoso, quero crer, e absurdo, não é verdade?
Cálicle s — Demais.
Sócrates — Mas é alternadamente, segundo penso, que adquire ou perde uma das duas.
Cálicles — É certo.
Sócrates — Acontecendo o mesmo com a força e a fraqueza?
Cálicles — Sim.
Sócrates — E com a velocidade e a lentidão.
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E para os bens e a felicidade, e seus contrários, os males e a desgraça, não é também alternadamente que adquire ou perde uns e outros?
Cálicles — É muito certo.
Sócrates — Ora, se encontramos alguma coisa que o homem possa ao mesmo tempo ter e não ter, é mais do que claro que não seria nem o bem nem o mal. Aceitaremos essa proposição? Só respondas depois de refletires.
Cálicles — Estou de inteiro acordo.
LI — Sócrates — Voltemos então a considerar o que admitimos antes. Sustentas que a fome é agradável ou desagradável? Refiro-me à fome em si.
Cálicles — É desagradável; porém é agradável comer quando se está com fome.
Sócrates — Compreendo. Mas a fome em si mesma é desagradável, não é?
Cálicles — De acordo.
Sócrates — E também a sede?
Cálicles — Muito! Sócrates — Convirá continuar perguntando, ou concordarás que todas as necessidades e todos os desejos são desagradáveis?
Cálicles — Concordo; para com essas perguntas.
Sócrates — Muito bem. Contudo, afirmaste que é agradável beber quando se está com sede.
Cálicles — Afirmei.
Sócrates — Mas, no que disseste, a expressão Ter sede equivale a alguma coisa?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Porém, sendo satisfação de uma necessidade, o fato de beber é prazer?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Logo, pelo que disseste, quem bebe sente prazer?
Cálicles — Sem dúvida.
Sócrates — Quando está com sede?
Cálicles — De acordo.
Sócrates — Quando sofre, portanto?
Cálicles — Sim.
Sócrates — E não percebes a conclusão que se nos impõe, ao afirmares que bebemos quando temos sede, isto é, que o prazer e a dor são simultâneos? Ou isso não acontece no mesmo lugar e ao mesmo tempo, na alma ou no corpo, como queiras? Para mim, não há diferença. Não é isso mesmo?
Cálicles — É.
Sócrates — No entanto, viver bem e, ao mesmo tempo, viver mal, segundo disseste, não é possível.
Cálicles — Disse, realmente.
Sócrates — Por outro lado, concordaste que é possível sofrer e sentir prazer ao mesmo tempo.
Cálicles — Parece que sim.
Sócrates — Do que se colhe que sentir prazer não é viver bem, como não é viver mal sentir dor. Assim, o bem e o agradável diferem entre si.
Cálicles — Não acompanho tuas sutilezas, Sócrates.
Sócrates — Acompanhas, Cálicles, porém te fazes desentendido. Avança um pouco mais do ponto a que chegaste, para veres com que sabedoria procuras corrigir-me. Cada um de nós deixa ao mesmo tempo de ter sede e de sentir prazer em beber?
Cálicles — Não sei aonde queres chegar.
Górgias — Assim não, Cálicles. Em atenção a nós mesmos, será melhor responderes, para podermos levar a discussão até ao fim.
Cálicles — Sócrates é sempre o mesmo, Górgias; apresenta e refuta umas questões mínimas e carecentes Inteiramente de valor.
Górgias — Que importa, Cálicles? Isso em nada te prejudica. Deixa que Sócrates argumente como melhor lhe parecer.
Cálicles — Então, continua a propor as tuas questões sem importância, já que esse é o parecer de Górgias.
Sócrates — És bem-aventurado, Cálicles, por teres sido iniciado nas coisas grandes antes de o seres nas pequenas. Pensava que isso não fosse permitido. Então, responde do ponto em que paraste, se cada um de nós não deixa ao mesmo tempo de sentir sede e prazer?
Cálicles — De acordo.
Sócrates — E o mesmo não se dá com a fome e os demais apetites, que também cessam com o prazer?
Cálicles — É certo.
Sócrates — Sendo assim, o prazer e a dor cessam ao mesmo tempo?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Porém os bens e os males não cessam ao mesmo tempo, conforme tu mesmo admitiste. E agora, já não o admites?
Cálicles — Admito. E daí?
Sócrates — O que se conclui disso, caro amigo, é que o bem não é a mesma coisa que o agradável, nem o mal o mesmo que o desagradável, porque uns cessam ao mesmo tempo, e outros não, por serem diferentes. Pois como poderia o agradável ser idêntico ao bem, e o desagradável ao mal? Se preferires, considera o problema pelo seguinte prisma, pois estou certo de que não concordarás com o que afirmei. Presta atenção: Não admites que os bons sejam bons por causa da presença do bem, tal como se dá com relação ao belo e à presença da beleza?
Cálicles — Admito.
Sócrates — E então? Dás o nome de bons aos insensatos e aos pusilânimes? Antes, pelo menos, não o fazias, mas aos corajosos e aos judiciosos. Não são esses que denominas bons?
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E então? Nunca viste uma criança pouco desenvolvida mentalmente revelar alegria?
Cálicles — Já.
Sócrates — Nem nunca encontraste algum adulto nas mesmas condições e que se mostrasse alegre?
Cálicles — Creio que sim. Mas, a que vem isso?
Sócrates — A nada. Basta que me respondas.
Cálicles — Já encontrei.
Sócrates — Não é verdade? E um indivíduo com entendimento são revelar alegria e tristeza?
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — Qual dos dois sente mais vivamente alegria ou tristeza: os sensatos ou os débeis mentais?
Cálicles — A meu parecer, não haverá grande diferença.
Sócrates — Isso me basta. Mas na guerra já viste algum cobarde?
Cálicles — Como não?
Sócrates — Ora bem; numa retirada dos inimigos, quais te pareciam mais alegres: os cobardes ou os corajosos?
Cálicles — Estaria a dizer que todos me pareciam igualmente alegres; se havia diferença era pequena.
Sócrates — Não importa. Então os cobardes também se alegram?
Cálicles — E muito!
Sócrates — E também os insensatos, ao que parece.
Cálicles — Sim.
Sócrates — E no caso de se aproximarem os inimigos, são os cobardes os únicos a sofrer, ou também os corajosos?
Cálicles — Ambos.
Sócrates — Igualmente?
Cálicles — Os cobardes talvez um pouco mais.
Sócrates — E com a retirada, também se mostravam mais alegres?
Cálicles — É possível.
Sócrates — Sendo assim, os insensatos e os judiciosos, os cobardes e os corajosos alegram-se e sofrem mais ou menos no mesmo grau, porém os cobardes mais do que os corajosos?
Cálicles — De acordo.
Sócrates — E não são bons os judiciosos e os corajosos, e maus os cobardes e os insensatos?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Nesse caso, os bons e os maus sentem dores e alegrias mais ou menos com a mesma intensidade?
Cálicles — É isso.
Sócrates — Então, são igualmente bons e maus os que são bons e os que são maus, ou serão os maus superiores aos bons tanto em bondade como em maldade?
LIII — Cálicles — Por Zeus, não sei o que queres dizer.
Sócrates — Não sabes que disseste que os bons são bons em virtude da presença do bem, e os maus, por causa da presença do mal? E que os bens são os prazeres e os males as tristezas?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Então, os que se alegram é porque têm consigo os bens ou prazeres, visto ficarem alegres?
Cálicles — Como não?
Sócrates — Logo, estando o bem presente, são bons os que se alegram?
Cálicles — Sim.
Sócrates — E então? Os que estão tristes não terão consigo males, ou sejam, dores?
Cálicles — Sem dúvida.
Sócrates — É a presença do mal, segundo disseste, que deixa maus ou maus. Ou retiras o dito?
Cálicles — Não; mantenho o que disse. Sócrates — Bons, portanto, são os que sentem alegria, e maus os que estão tristes?
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — Os que mais sentem são melhores; menos bons os que menos sentem, e igualmente bons os que sentem com a mesma intensidade?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Ora, não disseste que os judiciosos e os insensatos, os cobardes e os corajosos sentem alegria ou tristeza em grau mais ou menos igual, e que os cobardes até o sentem mais?
Cálicles — Disse.
Sócrates — Agora raciocina comigo, para vermos o que se segue do que admitimos até aqui, pois é bom, como dizem, repetir e considerar duas ou três vezes as coisas belas. Dissemos que é bom o indivíduo judicioso e corajoso, não é verdade?
Cálicles — Sim.
Sócrates — E mau o insensato e pusilânime.
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E bom, novamente, o que se alegra?
Cálicles — Sim.
Sócrates — E mau o que sente dor?
Cálicles — Necessariamente.
Sócrates — O bom e o mau, disseste, sentem igualmente alegrias e tristezas; porém o mau talvez em grau um pouquinho maior.
Cálicles — Sim.
Sócrates — Donde se colhe que o indivíduo mau é tão bom e tão mau quanto o bom, ou talvez até melhor? Não é a conclusão que se tira, como também a anterior, uma vez admitido que o bem e o agradável são a mesma coisa? Não é forçoso aceitarmos essa conclusão, Cálicles?