Sócrates — Torno a dizer, portanto, que as coisas se passam dessa maneira. Mas, se é assim mesmo, e o maior mal é a injustiça para quem a comete, e maior, ainda, se possível, do que esse mal maior, é não vir a ser punido o culpado: qual é a ajuda que, não podendo alguém prestar a si mesmo, o expõe ao ridículo? Não será justamente a que é capaz de afastar de nós o maior prejuízo? Necessariamente, o mais vergonhoso será não poder uma pessoa prestar essa ajuda a si mesma e aos seus amigos e familiares; em segundo lugar, a que nos protege do segundo mal; em terceiro, a que nos ampara contra o terceiro, e assim sucessivamente; de acordo com a grandeza do mal, é belo poder combatê-lo nas mesmas proporções, e vergonhoso não estar em condições de fazê-lo. As coisas se passam ou não se passam como eu disse, Cálicles?
Cálicles — Não se passam de outra maneira.
Sócrates — Dos dois males, portanto, cometer injustiça ou ser vítima de injustiça, afirmamos que cometer injustiça é maior do que ser vítima de injustiça. De que precisará, então, prover-se alguém para vir a auferir as duas vantagens: não cometer injustiça nem vir a ser vítima de injustiça? Necessitará de poder ou de vontade? Quero dizer o seguinte: para não sofrer injustiça, basta querer, para, de fato, não vir a sofrê-la, ou precisará do poder de não sofrer injustiça, para não vir a ser vitima dela?
Cálicles — É claro: precisará dispor desse poder.
Sócrates — E com relação a cometer injustiça? Bastará força de vontade a uma pessoa, para não cometer nenhuma, ou será preciso para isso adquirir algum poder e ou determinada arte, que, na hipótese de não ser adquirida nem exercitada, o levará àquela prática? Por que não respondes, Cálicles, a essa pergunta em especial? Não és de parecer que eu e Polo, em nossa conversação anterior, concluímos com acerto, quando dissemos que ninguém comete injustiça por vontade, e que todos os que praticam o mal procedem sem o querer?
Cálicles — Isso também poderá ser admitido, Sócrates, para que chegues a terminar a tua exposição.
Sócrates — Será preciso, portanto, ao que parece, adquirir certa capacidade, ou determinada arte, para não vir a cometer injustiça.
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E que arte poderá ser, que precisamos conhecer, para preservar-nos de que sejamos vítima de injustiça, senão de todo, o mínimo possível? Vê se pensas como eu. O que penso é o seguinte: ou essa pessoa precisará governar a cidade, senão mesmo tornar-se tirano dela, ou ficar amigo do governo estabelecido.
Cálicles — Poderás ver, Sócrates, como estou sempre disposto a elogiar-te, quando proferes algo razoável. Isso que disseste se me afigura muito certo.
Sócrates — Considera, então, se o seguinte também te parece certo. No meu modo de ver, qualquer indivíduo será tanto mais amigo de outro, quanto mais se lhe assemelhar, à maneira do que os antigos sábios disseram da aproximação dos semelhantes entre si. Não pensas também desse modo?
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — Logo, onde quer que um tirano domine grosseiros e sem educação, se houver na cidade alguém muito melhor do que ele, é fora de dúvida que o tirano se arreceará dessa pessoa e nunca poderá tornar-se-lhe amigo de todo o coração.
Cálicles — Está certo.
Sócrates — O mesmo se dará no caso de alguém muito pior do que ele: o tirano o desprezará, sem mostrar-lhe jamais a deferência devida aos amigos.
Cálicles — Isso também é verdade.
Sócrates — Resta-lhe, portanto, como único amigo digno de menção quem tiver o mesmo caráter que ele, gostos e aversões idênticos, e que se disponha a obedecer-lhe e a submeter-se à sua autoridade. Um indivíduo nessas condições gozará de grande influência na cidade, sem que ninguém consiga ofendê-lo impunemente. Não é assim mesmo?
Cálicles — É.
Sócrates — Do mesmo modo, no caso de dizer a sós consigo um dos jovens da cidade: De que jeito poderei alcançar influência, para que ninguém me venha a causar mal? O caminho a seguir, ao que parece, seria habituar-se desde moço a amar e a odiar as mesmas coisas que o tirano, e a procurar assemelhar-se-lhe tanto quanto possível. Não é verdade?
Cálicles — É.
Sócrates — Um indivíduo nessas condições, conforme dizeis, é que conseguirá pôr-se ao abrigo de qualquer malfeitoria e exercer grande influência na cidade.
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E porventura não praticará também nenhuma injustiça? Ou estará longe disso, uma vez que terá de ser semelhante ao seu mestre, que é injusto, e de ter grande influência junto dele? No meu modo de pensar, ao contrário, ele disporá as coisas para que possa praticar as maiores malfeitorias, sem vir, por isso, a ser punido. Ou não?
Cálicles — É certo.
Sócrates — Logo, trará consigo o maior dos males, tornando-se-lhe a alma perversa e corrompida pelo poder e imitação do amo.
Cálicles — Não sei como consegues, Sócrates, torcer de tantas maneiras teus argumentos. Pois não sabes que esse imitador poderá matar, se assim o resolver, quem não imitar o tirano, e apoderar-se de seus bens?
Sócrates — Sei, meu bom Cálicles; precisaria que eu fosse surdo, pois isso mesmo já ouvi de ti e de Polo mais de uma vez, e de quase toda a gente da cidade. Mas, escuta também
o seguinte: ele o matará se quiser; mas será um facinoroso que mata um homem de bem.
Cálicles — E não é isso, justamente, o mais revoltante?
Sócrates — Não para quem for judicioso, como está a indicar nosso raciocínio. Ou és de parecer que todo o esforço do homem deve consistir em viver o mais tempo possível e praticar apenas as artes que sempre nos livram dos perigos, como é o caso da retórica, que me aconselhas a cultivar e que nos salva nos tribunais?
Cálicles — Sim, por Zeus; e foi um bom conselho.