Sócrates — Ademais, observo que presentemente ocorre algo despropositado de que também tenho ouvido falar, com respeito aos homens do passado. Verifico que quando a cidade ataca um desses políticos suspeitos de malfeitorias, eles se mostram indignados e se queixam como se estivessem sendo horrivelmente maltratados. Prestaram à cidade serviços sem conta, é o que todos dizem, e agora ela o arruína injusta mente. Porém tudo isso é falso; nunca nenhum governa dor de cidade foi perseguido injustamente pela própria cidade a que ele preside. O caso dos indivíduos que se fazem passar por chefes políticos parece ser igual ao dos que se apresentam como sofistas. Pois os sofistas, conquanto em tudo o mais sejam sábios, procedem neste particular por maneira insensata. Dizendo-se professores de virtude, muitas vezes acusam os discípulos de serem injustos para com eles, por se negarem a pagar o que lhes devem e mostrarem-se mal agradecidos pelos benefícios recebidos. Poderá haver alegação mais absurda? Indivíduos que se tornaram bons e justos por os ter deixado o professor livres da injustiça e plantado neles a justiça, estarão em condições de proceder mal, precisamente por meio da injustiça que já não está neles? Não achas isso absurdo, camarada? Obrigaste -me a proferir um verdadeiro discurso, Cálicles, por não responderes às minhas perguntas.
Cálicles — E não saberás falar se ninguém te responder?
Sócrates — É possível. Em todo caso, pelo menos agora alonguei consideravelmente minha fala, por não me quereres responder. Mas, pelo deus da bondade, caro amigo, dize -me se não te parece absurdo afirmar alguém que deixou boa outra pessoa, e depois de haver ela chegado a ser o que é graças aos seus esforços, censurá-la por ser má?
Cálicles — Penso que sim.
Sócrates — E não tens ouvido isso mesmo da boca dos que se gabam de ensinar virtude aos homens?
Cálicles — Já ouvi. Mas, por que mencionas essa gente tão carecente de valor?
Sócrates — E tu, que dirás desses supostos dirigentes da cidade, empenhados em deixá-la o melhor possível, e que, no entanto, quando se lhes oferece ocasião, a acusam de ser péssima? Percebes alguma diferença entre uns e outros? Meu caro, sofista é a mesma coisa que orador, ou, pelo menos, são vizinhos e aparentados, como eu disse a Polo. Mas, por desconhecimento do assunto, consideras a retórica como algo belo e desprezas a sofistica. A verdade, porém, é que a sofística é mais bela do que a retórica quanto a legislação é mais do que a jurisprudência e a ginástica mas do que a medicina. A meu pensar, os oradores políticos e os sofistas são os únicos que não têm o direito de queixar-se das pessoas que eles acusam de serem ruins para eles, pois isso é o mesmo que acusarem a si próprios de não terem feito nenhum bem aos que eles se gabavam de haver deixa do bons. Não é assim mesmo?
Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — A eles, unicamente, como se vê, é que competia prestar serviços sem exigir remuneração, se for certo o que proclamam. Quem recebe benefício de qualquer modalidade, digamos, por haver aprendido com um pedótriba a correr, poderá deixar de pagar a remuneração devida, no caso de permitir o professor que se vá embora e de não lhe haver notificado antes que o paga mento deveria ser feito logo que lhe houvesse comunicado agilidade. Não é pela lentidão, quero crer, que os homens procedem injustamente, mas pela injustiça, não é verdade?
Cálicles — Sim.
Sócrates — Ora, se o professor lhe tira precisamente isso, a injustiça, não há perigo de vir a sofrer dele alguma malfeitoria, por ser o professor a única pessoa capaz de prestar bons serviços sem combinação prévia, se em verdade for capaz de formar homens virtuosos, não é assim mesmo?
Cálicles — Exato.