Sof 226a-229d: O Sofista é o que purifica a alma?

Estrangeiro – Como vês, é muito acertado dizer-se que se trata de um animal de múltiplas facetas. Daí, confirmar-se o dito, de que nem tudo se pode pegar só com uma das mãos.

Teeteto – Pois empreguemos duas.

Estrangeiro – Sim, é o que precisaremos fazer, empenhando nisso todos os nossos recursos, a fim de acompanhar-lhe o rastro. Dize-me o seguinte: não temos designações especiais para determinadas ocupações servis?

Teeteto – Muitas, até; porém, no meio de tantas, a quais particularmente te referes?

Estrangeiro – Penso nas seguintes: coar, peneirar, joeirar, debulhar.

Teeteto – E daí?

Estrangeiro -E também: cardar, fiar, urdir e mil outras de emprego corrente em ocupações congêneres, não é isso mesmo?

Teeteto -Onde queres chegar com tais exemplos e para que tantas perguntas?

Estrangeiro – De modo geral, todos esses vocábulos exprimem a ideia de separação.

Teeteto -Certo. I Estrangeiro -Ora, de acordo com o meu raciocínio, se uma arte, apenas, abrange todas essas ocupações, teremos de atribuir-lhe um único nome.

Teeteto – E como a denominaremos?

Estrangeiro – Arte de separar.

Teeteto – Que seja.

Estrangeiro – Considera agora se nos será possível distinguir duas espécies.

Teeteto – Impões-me uma tarefa muito rápida.

Estrangeiro – Porém nas distinções por nós feitas, já se tratou da separação entre o pior e o melhor, e também entre semelhante e dessemelhante.

Teeteto – Dita dessa maneira, parece-me bastante clara.

Estrangeiro – Não conheço o nome geralmente aplicado a esta última separação; porém sei o que dão à outra, a que retém o melhor e rejeita o pior.

Teeteto – Dize qual seja.

Estrangeiro – No meu entender, todas as separações desse tipo são geralmente chamadas purificação.

Teeteto – Com efeito; é como as denominam.

Estrangeiro – E todo o mundo não perceberá que há duas espécies de purificação?

Teeteto – Depois de refletir, é possível; eu, pelo menos, não percebo purificação alguma.

Estrangeiro -Será conveniente abranger numa designação única as diferentes modalidades de purificação do corpo.

Teeteto– Quais são, e como se chamam

Estrangeiro – Primeiro, as dos seres vivos, que operam no interior do corpo, graças a uma discriminação exata pela ginástica e a medicina, como a purificação externa, de designação corriqueira, alcançada pela arte do banho; depois, a dos corpos inanimados, que compreende a arte do pisoeiro e a dos adornos em de geral, de infinitas modalidades, cujos nomes são considerados ridículos.

Teeteto – É muito certo.

Estrangeiro – Certo, não, Teeteto: certíssimo. Mas o método argumentativo não dá maior nem menor importância à purificação por meio da esponja do que à obtida com poções medicamentosas, jamais perguntando se os benefícios de uma são mais ou menos relevantes do que os da outra. Para alcançar o conhecimento é que ela se esforça por observar as afinidades ou dissemelhanças entre as artes, honrando a todas igualmente, e quando chega a compará-las, não conclui que uma seja mais ridícula do que a outra. Não considera, ainda, mais importante quem ilustra a arte da caça com o exemplo do estratego do que com o do matador de pulgas, porém mais pretensioso. Do mesmo modo, agora, no que entende com o nome para designar o conjunto das forças purificadoras dos corpos, quer sejam animados quer não sejam, não se preocupa no mínimo de saber que nome é de aparência mais distinta. Limitar-se-á a separar a purificação da alma, deixando num único feixe as outras purificações, sem indagar do objeto sobre que se exercem. Seu intento exclusivo consiste nisto, precisamente: separar das demais purificações a que tem por objetivo a alma, se é que compreendemos o seu fim.

Teeteto – Penso que já compreendi, e admito que haja duas espécies de purificação, sendo diferente da do corpo a que se exerce sobre a alma.

Estrangeiro – Ótimo! Agora ouve o que segue e procura partir ao meio esta última secção.

Teeteto – Sob tua direção, tentarei dividir conforme desejas.

Estrangeiro – A maldade na alma não é algo diferente da virtude?

Teeteto – Como não?

Estrangeiro – E purificação, não consiste em jogar fora a parte ruim e conservar tudo o mais?

Teeteto – Isso mesmo.

Estrangeiro – Sendo assim, todo meio que encontrarmos de expungir a alma de maldade, se lhe dermos o nome de purificação, teremos falado com acerto.

Teeteto – Perfeitamente.

Estrangeiro – Precisamos admitir que na alma há duas espécies de maldade.

Teeteto – Quais serão?

Estrangeiro – Uma está na alma como a doença está no corpo; a outra como a fealdade.

Teeteto – Não compreendo.

Estrangeiro – Talvez não consideres a doença a mesma coisa que discórdia.

Teeteto – Sobre isso, também, não sei o que deva responder. .

Estrangeiro – És de parecer que discórdia não seja a dissolução de elementos aparentados, pela ação de algum dissídio intercorrente?

Teeteto – Não será outra coisa.

Estrangeiro – E fealdade, não será senão defeito de proporção, gênero por demais nocivo à vista?

Teeteto – Sim, terá de ser isso, simplesmente.

Estrangeiro – – E então? Já não observamos que na alma dos indivíduos ruins estão sempre em conflito as opiniões e os desejos, a coragem e os prazeres, a razão e as tristezas, e tudo o mais da mesma natureza, em constante oposição?

Teeteto – Sem dúvida.

Estrangeiro – Logo, tudo isso apresenta afinidade recíproca?

Teeteto – Como não?

Estrangeiro – Nesse caso, se designarmos a maldade como doença e discórdia da alma, teremos encontrado o termo exato.

Teeteto – Exatíssimo.

Estrangeiro – Como? Se as coisas que participam do movimento e tendem para determinada meta errarem o alvo e passarem de lado a cada tentativa no propósito de alcançá-la, com diremos que isso acontece: em virtude da simetria existente entre eles ou da assimetria?

Teeteto – Da assimetria, evidentemente.

Estrangeiro – Por outro lado, sabemos muito bem que nenhuma alma ignora voluntariamente seja o que for.

Teeteto – É muito certo.

Estrangeiro – Ora, errar nada mais é do que se desviar do seu caminho a alma, quando intenta alcançar a verdade, sem passar ao lado dela o entendimento.

Teeteto – Exato.

Estrangeiro – Nesse caso, precisaremos atribuir fealdade e assimetria à alma ignorante.

Teeteto – É claro.

Estrangeiro – Há nela, por conseguinte, como parece, dois gêneros de males: um, designado geralmente como maldade, é, sem dúvida, doença da alma.

Teeteto – Certo.

Estrangeiro – O outro tem o nome de ignorância; mas, por ser o único vício da alma, de regra não a consideram como tal.

Teeteto – Evidentemente, terei de admitir o que a princípio duvidava, quando declaraste haver dois gêneros de maldade na alma, e que a cobardia, a intemperança e a injustiça devem ser englobadamente consideradas como uma doença em nós, e as manifestações da ignorância, tão variadas quanto frequentes, como deformidade.

Estrangeiro – E para o caso do corpo, não se formaram duas artes que se ocupam com essas duas afecções?

Teeteto – Quais serão?

Estrangeiro – Para e fealdade, ginástica; para a doença, medicina.

Teeteto – É evidente.

Estrangeiro – E onde há insolência, injustiça e cobardia, não é a correção, dentre todas as artes, a mais de acordo com a justiça?

Teeteto – Com toda a probabilidade; pelo menos, assim pensa a maioria.

Estrangeiro – E então? Para a ignorância em geral, poder-se-ia indicar uma arte mais adequada do que a da instrução?

Teeteto – Não há outra.

Estrangeiro – Senão, vejamos. Com respeito à arte do ensino, diremos que só há um gênero, ou que há pelo menos dois, e ambos de grande importância? pensa no caso.

Teeteto – Já pensei.

Estrangeiro – A meu ver, deste modo resolveremos mais facilmente a questão.

Teeteto – Como será?

Estrangeiro – Examinando a ignorância, para ver se pode ser dividida ao meio. Sendo dupla, é evidente que o ensino deverá também constar de duas partes, uma para cada divisão da ignorância.

Teeteto – E com isso, já se te revelou o que procuramos?

Estrangeiro – Acho que consegui isolar uma espécie grande e por demais nociva de ignorância, que sozinha vale por todas as outras reunidas.

Teeteto – Qual é?

Estrangeiro – Quando se imagina conhecer o que não se conhece. Talvez seja essa a origem dos erros a que está sujeito o intelecto.

Teeteto – É verdade.

Estrangeiro – Essa espécie de ignorância, quero crer, é a única que recebeu o nome de tolice.

Teeteto – Perfeitamente.

Estrangeiro – E como designaremos a parte do ensino que nos livra de tal inconveniente?

Teeteto – Eu, de mim, Estrangeiro, acho que a parte restante tem o nome de ensino profissional; a outra, pelo menos entre nós, é denominada educação.

Estrangeiro – O mesmo se observa, Teeteto, entre os demais helenos. Porém ainda nos falta considerar se a educação é um todo indivisível ou se comporta alguma divisão merecedora de nome especial?

Teeteto – Falta isso, realmente.