Personagens da Mitologia

Sem dúvida, nos termos em que a expressamos, esta noção de mundo mítico é meramente negativa. O que mais importaria saber não é o que os personagens da mitologia não são, mas sim o que eles são. Repare-se, todavia, que o «não ser Homem», o «não ser Deus» e o «não ser Natureza» já apontam, embora insegura e confusamente, para o ser que esses não-seres são. Admitamos, ainda que com mui compreensível timidez, que o não ser Homem é ser «homens», que o não ser Deus é ser «deuses» e que o não ser Natureza é ser «naturezas» ou «ambiências intramundanas». Bem sabemos que não é fácil sair violentamente do conceptual e entender o que sejam homens, deuses e naturezas, sem referirmos a particularidade dos homens à generalidade do Homem, a pluralidade dos deuses à unidade de Deus, e a singularidade das ambiências ou dos horizontes naturais à universalidade da Natureza. Mas se fosse possível olvidar-nos por instantes, do Homem, de Deus e da Natureza, como conceitos gerais e universais, logo nos apareceriam, noutro mundo, que não é o nosso, ou já não é o nosso, homens que não seriam tão «humanos» como o Homem, deuses que não seriam tão «divinos» como Deus, e naturezas que não seriam tão «naturais» como a Natureza. E tais seriam os homens, os deuses e as naturezas de um mundo mítico. Por outras palavras e direta consequência do que acabamos de escrever: para reencontrarmos o ser-mítico daquele não-ser-lógico, que é o dos homens nem tanto humanos, dos deuses nem tanto divinos e das naturezas nem tanto naturais, teríamos de percorrer ao invés o caminho já trilhado pela história da filosofia.

Qual foi esse caminho? Esse caminho foi o da descoberta, ou melhor, o da invenção do homem, caminho que foi também o da des-divinização e da desnaturação dos entes que viriam a ser e a não ser mais do que projetos do Homem, e só do Homem, não o projeto de uma Realidade que, de um só arremesso põe um homem que está para o mundo dele, com os deuses que estão para um e para outro, em relações predeterminadas. A filosofia, como processo de desocultação do ser do Homem, é o mesmo processo de ocultação dos deuses no ser de Deus, e das naturezas, no da Natureza. O fim deste processo de hominização está presente no último patamar da história que se proclama «universal». (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)