Tradução em português de José Carlos Baracat Júnior
2. Em primeiro lugar, acerca do vício e da virtude, devemos dizer o que se origina no momento em que se diz que o vício está presente; porque dizemos que é preciso retirá-lo como se houvesse algum mal na alma e fosse necessário introduzir a virtude, adorná-la e infundir beleza no lugar da fealdade anterior. Se, pois, disséssemos que “a virtude é uma harmonia” e “o vício uma desarmonia”, emitiríamos uma opinião aceita pelos antigos e essa teoria acrescentaria algo não insignificante ao que investigamos? Pois, se harmonização das partes da alma entre si de acordo com a natureza é a virtude e sua não harmonização é o vício, não haveria nela nada adventício nem vindo de fora, mas cada parte chegaria tal como é a uma harmonia, ou não chegaria, no caso da desarmonia, sendo isso mesmo que ela é, como quando dançarinos dançam e cantam uns com os outros, mesmo que não sejam os mesmos, ou que apenas um cante enquanto os demais deixem de cantar, ou que cada um cante sua parte; pois não é preciso que apenas cantem em conjunto, mas também que cada um cante belamente com sua própria musicalidade: assim, também lá, na alma, haverá harmonia se cada parte fizer o que lhe cabe. É preciso, com efeito, que antes dessa harmonia haja uma outra virtude de cada parte e também um vício de cada parte anterior à desarmonia das partes entre si.
Então, cada parte é má pela presença de quê? Do vício, certamente. É boa, por sua vez? Da virtude, certamente. Então, se alguém diz que o vício para a parte racional é a ignorância, pode ser que esteja dizendo que a ignorância, concebida como negação, seja a não presença de algo. Mas, quando também há na alma da alma opiniões falsas, que são aquilo que principalmente causa o vício, como se poderá negar que se originam nela e que desse modo essa parte se altera? Não é a parte irascível, quando covarde, diferente de quando é corajosa? É a parte desiderativa, quando licenciosa, não é distinta de quando é temperante? Ora, ela foi afectada.
Não, pois diremos que, quando cada uma das partes está na virtude, ela atua de acordo com a essência pela qual cada uma escuta a razão; e nossa capacidade de raciocinar provém do intelecto, ao passo que as outras provêm dessa capacidade. De fato, o escutar a razão é como ver: não é ser configurado, mas ver e estar em ato quando se vê. Porque, assim como a visão é a mesma em sua essência tanto estando em potência quanto em ato, e o ato não é uma alteração, mas ele ao mesmo tempo se aproxima daquilo que possui por essência, está visto e conhece impassivelmente, assim é também como a capacidade de raciocinar se relaciona com o intelecto e o vê, e esse é a faculdade de inteligir, sem que se origine uma marca interna, mas ela possui o que viu e também não o possui: possui porque o conhece, mas não o possui porque coisa alguma vinda do objeto visto nela se deposita, como a figura na cera. E é preciso lembrar que não foi dito que as lembranças vêm do armazenamento de certas coisas, mas da alma que desperta sua potência de modo a ter até mesmo o que não tem.
Quê, então? Antes de se lembrar desse modo, não era ela diferente do momento posterior, quando se lembra? Ora, queres que seja distinta? Pois não é, pelo menos, porque se alterou, a não ser que alguém diga que a passagem da potência ao ato seja uma alteração, porque não há nada que lhe seja acrescentado, mas ela faz por natureza exatamente aquilo que era. Pois, em geral, as atividades dos seres imateriais se originam sem que eles se alterem juntamente; caso contrário, pereceriam; mas, muito pelo contrário, permanecendo; ser afectado enquanto está em atividade é coisa dos seres acompanhados de matéria. Mas, se for afectado sendo imaterial, não teria em que permanecer: assim como na vista, quando a visão se atualiza, o afectado é o olho, e as opiniões são como objetos da visão.
Mas como a parte irascível é covarde? E como também é corajosa? Ora, é covarde porque ou não olha para a razão, ou olha para uma razão que é vil, ou por falta dos órgãos, isto é, por falta ou por corrupção dos instrumentos corporais, ou porque é impedida de agir, ou não se sente movida e como que excitada; é corajosa, se ocorrem as circunstâncias contrárias. Nesses casos, não há alteração nem afecção. E a parte desiderativa, quando apenas ela age, origina a chamada Iicenciosidade; pois ela faz tudo sozinha e não estão presentes as outras partes cuja função, quando presentes, é dominá-la e guiá-la. Se as visse, seria diferente, pois não faria tudo, mas descansaria um pouco ao ver, como lhe é possível, as outras partes. Mas talvez o chamado vício da parte desiderativa seja, no mais das vezes, um mau estado do corpo, e a virtude, o contrário; assim, em ambos os casos, não há nenhum acréscimo na alma.