Na primeira fase contam-se quatro Divindades primordiais: Caos, Terra, Tártaro “no fundo da Terra” e Eros. Caos e Eros são princípios dinâmicos substanciais que presidem dois modos antí-téticos de procriação: por cissiparidade (Kháos significa “Cissor”) e por acasalamento (Éros, “Amor”), e assim ambos são paredros da Terra por ser ela “de todos sede sempre irresvalável”. No fundo mé-ôntico da sede sempre irresvalável, Tártaro espelha uma contra-imagem, porque Tártaro pertence à Deusa Terra como o modo dela mais característico de privação de ser: Tártaro é a queda sem direção nem fim.
Se assim devém, Terra por cissiparidade procria Céu constelado, Montanhas longas e a inextenuável planície impetuosa de ondas chamada Pontos (“Mar”): eis o eidos do Mediterrâneo constituído pelos Deuses primordiais, eis a imagem deste eidos visível como terra, céu, montanhas e mar.
A relação de identidade e de alteridade entre Céu e Terra – que teogonicamente se diz a hierogamia primeva – explica-se em duas cláusulas de fins para os quais Terra sede sempre irresvalável o gerou igual a si mesma: 1) para cobri-la (ou: cercá-la) toda ao redor e 2) para ser como ela sede sempre irresvalável (T. 126-8).
Na primeira cláusula dos fins celestes, a preeminência de Céu é indicada pelo advérbio perí (“ao redor”) na forma da circundância, enfatizada pelo verbo kalyptoi, “cobrir” (ou: eérgoi, “cercar”). A envolvência do Céu fecundante funda a Deusa Terra como sede sempre irresvalável de todos os Imortais que têm a cabeça nívea do Olimpo: o ato de fundar se diz a hierogamia. Neste sentido, fundar é o mesmo que fecundar, este fundar fecundante se diz como o envolver da circundância: é na forma desta envolvência inultrapassável do circundante absoluto que Hesíodo e Homero pensaram a transcendência divina.
Na segunda cláusula dos fins celestes, o ser do Céu como sede dos Deuses venturosos – ser igual à Terra em si mesma – é sede sempre irresvalável, e isso quer dizer: a unidade hierogâmica de Céu e de Terra se mostra na simultaneidade de um recíproco fundar-se como sede e como imagem. A sede é o ser, a imagem são as simultâneas identidade e alteridade do ser.
Na segunda fase, presidindo Eros como Caos preside à primeira, a relação de identidade e de alteridade entre Céu e Terra figura como cópulas prolíficas de Céu e Terra: em contínuos coitos com Céu constelado, Terra prodigiosa gerou – sem ainda os dar à luz:
1) Oceano rio que circundando a Terra mãe flui retornando a suas próprias fontes e assim cinge a totalidade do ser;
2) Os Titãs Koios (?), Kreios (“Prepotente”), Hyperíon (“Supereunte”) e Iapetós (“Golpeado”);
3) as Titanidas Theia (“Vidência”), Rhéia (“Fluência”), Thémis (“Lei”), Mnemosyne (“Memória”), Phoibe (“Luminosa”) e Tethys (“Nutriz”);
4) com ótimas armas, Crono de curvo pensar, o mais terrível dos filhos, pois odiava a fecundidade do genitor; e
5) os Ciclopes de soberbo coração: Trovão, Relâmpago e Raio de forte ânimo (Brónte, Sterópe, Arges), que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio (T. 139-46 e 501-6); e
6) os Centímanos (Kótos, Briareus, Gyges), que são aliados fiéis de Zeus egífero (Zeus portador da égide) e que na última fronteira do ser ante o não-ser guardam as portas que prendem no Tártaro os inimigos de Zeus (T. 147-48 e 811-9).
Na terceira fase, Crono de curvo pensar irrompe tal como reina e tal como cai: por dolos, oculto, à espreita, na tocaia, com a foice de dente agudo e com tortas intenções, Crono odeia e ceifa os desígnios (genitais) de seu pai Céu: dos salpicos de sangue caídos sobre o chão devêm as Erínies prepotentes, os Gigantes em armas e as Ninfas Melíai (“Lanças”), e da espuma ejaculada devém Afrodite; Crono espreita e engole todo filho seu ao nascer, exceto seu filho que com ele compartilha o epíteto oplótatos (“de ótimas armas”, T. 137 e 478), e por isso mesmo, logrado e vencido pelas artes e pela violência de seu filho, vomita a todos os filhos, principiando pelo engolido por último, a saber: a pedra que Zeus fixa como umbigo da Terra em Delfos (T. 494); Crono por fim é lançado ao Tártaro e nele preso (T. 716ss).
O epíteto agkylométes na Teogonia significa “de curvo ceifar” e “de curvo pensar” e caracteriza Crono e Prometeu. A sina de Crono – a saber: tentar evitar que se cumpram desígnios de Zeus e por isso ser lançado e preso no Tártaro – assinala o destino da geração de Jápeto (lapetós: “Golpeado”). Banidos por Zeus da luminosidade da presença urânica no sombrio Tártaro sob os ínferos, a essência ancestral do Céu constelado manifesta-se ao modo da imagem especular (por uma relação de identidade e de alteridade) nessa pena imposta a Crono e ao génos de seu irmão Jápeto (cujos filhos são Atlas, Menécio, Prometeu e Epimeteu, todos lançados e presos no Tártaro, T. 509ss).
Na quarta fase cósmica eleva-se ao máximo a manifestação do sentido de Zeus e a perfeição do espírito do Olimpo domina a totalidade cósmica. “O sentido de Zeus dentro do Olimpo” (Diòs nóon entòs Olympou, T. 36 e 51) é o momento em que predomina o todo sobre as partes na unidade unicamente inteligente.
Hèn tò sophòn mounon légesthai ouk ethélei kai ethélei Zenòs ònoma. (Heráclito, fr. 32 D.K.)