aletheia (Detienne)

Em uma civilização científica, a ideia de Verdade introduz imediatamente as de objetividade, comunicabilidade e unidade. Para nós, a verdade se define em dois níveis: por um lado, conformidade com alguns princípios lógicos, e, por outro, conformidade com o real, sendo, desse modo, inseparável das ideias de demonstração, verificação e experimentação. Dentre as noções que o senso comum veicula, a verdade é, sem dúvida, uma das que parece ter sempre existido, sem ter sofrido nenhuma transformação; uma das que parece, também, relativamente simples. Entretanto, basta considerar que a experimentação, por exemplo, que sustenta a nossa imagem do verdadeiro, só se tomou uma exigência numa sociedade onde era tida como uma técnica tradicional, ou seja, numa sociedade onde a física e a química conquistaram um papel importante. E possível, então, perguntar-se se a verdade como categoria mental não é solidária a todo um sistema de pensamento, se não é solidária à vida material e à vida social. Os indo-iranianos possuem uma palavra que é traduzida corretamente por Verdade: Rta. Mas Rta é também a oração litúrgica, a potência que assegura o retorno das auroras, a ordem estabelecida pelo culto dos deuses, o direito, em suma, um conjunto de valores que quebram nossa imagem da verdade. O simples dá lugar ao complexo, e a um complexo diversamente organizado. Se o mundo indo-iraniano é tão diferente do nosso, o que haveríamos de dizer da Grécia? A “Verdade” ocuparia o mesmo lugar que ocupa em nosso sistema de pensamento? Ela abarcaria o mesmo conteúdo semântico? A questão não é de mera curiosidade. A Grécia nos chama atenção por duas razões solidárias: em primeiro lugar, porque entre a Grécia e a Razão ocidental as relações são estreitas, tendo surgido historicamente do pensamento grego a concepção ocidental de uma verdade objetiva e racional. Sabe-se, por outro lado, que, na rica reflexão dos filósofos contemporâneos sobre o Verdadeiro, Parmênides, Platão e Aristóteles são constantemente invocados, confrontados e colocados em questão. Somente mais tarde, inserida no tipo de razão que a Grécia constrói a partir do século VI, uma determinada imagem da “Verdade” virá a ocupar um lugar fundamental. De fato, quando a reflexão filosófica descobre o objeto próprio de sua busca, quando se desarticula do fundo do pensamento mítico, onde a cosmologia jônica ainda encontra suas raízes, quando se lança deliberadamente aos problemas que não mais deixarão de atrair sua atenção, ela organiza uni campo conceituai em tomo de uma noção central que definirá, a partir de então, um aspecto da primeira filosofia como tipo de pensamento e do primeiro filósofo como tipo de homem: Aletheia ou a “Verdade”.

Quando Aletheia aparece no prelúdio do poema de Parmênides, não surge articulada por completo pelo cérebro científico. Ela possui uma longa história. No estado de documentação, começa com Homero. Este estado, de fato, poderia fazer-nos crer que apenas o desenvolvimento cronológico dos testemunhos sucessivos de Homero a Parmênides, conseguiria lançar alguma luz sobre a “Verdade”. O problema coloca-se, entretanto, em termos bastante distintos. Desde muito tempo, convém que se sublinhe o caráter estranho da mise-en-scène na filosofia parmenídica: uma viagem num carro conduzido pelas filhas do Sol, uma via reservada ao homem que sabe, um caminho que conduz às portas do Dia e da Noite, uma deusa que revela o conhecimento verdadeiro, em suma, um conjunto mítico e religioso de imagens que contrasta singularmente com um pensamento filosófico tão abstrato quanto aquele que trata de Ser em si. De fato, todos estes traços, cujo valor religioso não pode ser contestado, orientam-nos de forma decisiva em direção a alguns meios filosófico-religiosos onde o filósofo ainda não é mais do que um sábio, digamos, até mesmo um mago. Mas é nestes meios que se encontra um tipo de homem e um tipo de pensamento voltados para a Aletheia: é a Aletheia que Epimênides de Creta tem o privilégio de ver com seus próprios olhos; é a planície de Aletheia” que a alma do iniciado aspira a contemplar. Com Epimênides, com as seitas filosófico-religiosas, a pré-história da Aletheia racional se encontra nitidamente orientada para determinadas formas de pensamento religioso, nas quais a mesma “potência” desempenhou um papel fundamental.

A pré-história da Aletheia filosófica conduz-nos a um sistema de pensamento do adivinho, do poeta e do rei de justiça, aos três setores nos quais um determinado tipo de palavra define-se por Aletheia. Determinar a significação pré-racional da “verdade” é tentar responder a uma série de questões, dentre as quais as mais importantes são as seguintes: Como se define, no pensamento mítico, a configuração de Aletheia? Qual é o estatuto da palavra do pensamento religioso? Como e por que um tipo de palavra eficaz é substituído por um tipo de palavra com problemas específicos – relação entre a palavra e a realidade, relação entre a palavra e o outro? Que relação pode existir entre algumas inovações da prática social do século VI e o desenvolvimento de uma reflexão organizada sobre o logos? Quais são os valores que, sofrendo inteiramente uma mudança de significação, continuam a impor-se, tanto num sistema de pensamento quanto no outro, no mito e na razão? Quais são, por outro lado, as rupturas fundamentais que diferenciam o pensamento religioso do pensamento racional? As intenções deste livro não se esgotam dentro do projeto único de definir, através de seu contexto mental, social e histórico, a significação pré-racional da “verdade” no sistema de pensamento mítico e, solidariamente, seu primeiro conteúdo em meio ao pensamento racional. Na história de Aletheia encontramos o terreno ideal para levantar, por um lado, o problema das origens religiosas de determinados esquemas conceituais da primeira filosofia e, a partir daí, colocar em evidência um aspecto do tipo de homem que o filósofo inaugura na cidade grega; por outro lado, detectar nos aspectos de continuidade que tecem uma trama entre o pensamento religioso e o pensamento filosófico, as mudanças de significação e as rupturas lógicas que diferenciam radicalmente as duas formas de pensamento.