Excertos de REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990, p. 57.
A época do humanismo e do renascentismo é marcada por maciça revivescência do platonismo, que cria uma têmpera espiritual inconfundível.
A revivescência do platonismo, porém, não significa o renascimento do pensamento de Platão tal como o encontramos expresso nos diálogos. É verdade que a Idade Média leu pouquíssimos diálogos (Menon, Fédon e Timeu) e que, ao contrário, ao longo do século XV, os diálogos foram todos traduzidos para o latim, as versões de Leonardo Bruni alcançaram grande sucesso e muitos humanistas puseram-se em condições de ler e entender o texto grego original. Entretanto, o redescoberto texto platônico continuou a ser lido à luz da tradição platônica posterior, ou seja, em função dos parâmetros que os neoplatônicos tomaram canônicos.
Para o leitor de hoje, que está de posse das mais refinadas técnicas exegéticas, isso pode parecer paradoxal. Na realidade, porém, não o é. Somente a partir de princípios do século XIX é que se conseguiu começar a separar as doutrinas genuinamente platônicas das doutrinas neoplatônicas e somente em nossos dias, pouco a pouco, se está completando sistematicamente a imagem filosófica de Platão em todos os seus traços, como já vimos em parte no volume anterior (cf. pp 129ss.).
Isso aconteceu por uma série de motivos, que devemos precisar sinteticamente, porque nos ajudam bastante a compreender a época que estamos estudando.
Em geral, a Antiguidade tendia a atribuir ao fundador de uma escola ou de um movimento filosófico todas as descobertas posteriores nele inspiradas. Isso aconteceu particularmente com Platão, pelo fato de ele não ter deixado escritos sistemáticos, confiando às lições as suas doutrinas sobre os princípios supremos e não autorizando os discípulos a comporem um quadro geral do seu pensamento. Como vimos no volume anterior, a Academia por ele fundada sofreu o destino mais aventuroso e registrou mudanças de grande relevo (cf. vol.I, pp. 36ss e 274ss). Na época helenística, deslizou para o ceticismo e depois se fez portador de instâncias ecléticas (absorvendo sobretudo elementos estoicos), ao passo que, na época imperial, esforçou-se por criar uma sistematização metafísica de conjunto, que se iniciou com os medioplatônicos (cf. vol. I, pp. 246 ss) e culminou com Plotino e os neoplatônicos tardios (cf. vol. I, pp. 256 ss).
Deve-se recordar ainda que, com os neoplatônicos, os próprios escritos aristotélicos, em certo sentido, foram assumidos na tradição, comentados em uma certa ótica e considerados como os “pequenos mistérios”, com a função de introduzir aos “grandes mistérios”, ou seja, como escritos propedêuticos capazes de preparar a compreensão de Platão. A isso acrescente-se ainda as complicações que já ilustramos neste volume (pp 32 – 41 ss), ligadas aos complexos acontecimentos relativos ao Corpus Hermeticum e aos Oráculos Caldeus, ou seja, àquelas correntes de pensamento mágico-teúrgico que utilizaram filosofemas platônicos, colorindo com tintas bem particulares uma série de conceitos platônicos, que assim coloridos influenciaram por reflexo a própria tradição platônica de origem. Por fim, deve-se lembrar que o platonismo teve o seu patrimônio doutrinário acrescido também com a especulação cristã, alcançando cumes de notável elevação nos escritos do pseudo-Dionísio Areopagita (cf. vol. I, pp. 421 ss), que apresentam elementos proclianos combinados com elementos extraídos da teologia cristã, exercendo grande fascínio.
Ora, o platonismo chegou aos renascentistas com todas essas incrustações multisseculares, ou seja, chegou-lhes na forma do neoplatonismo e, ademais, com todas as infiltrações mágico-herméticas e cristãs. E como tal foi acolhido e reconsagrado.
Mas ainda há um último ponto a ser destacado para que se tenha o quadro completo. Quando as escolas filosóficas de Atenas e Alexandria entraram em decadência, Bizâncio recolheu e manteve viva a tradição helênica, embora com escassa originalidade. E foram precisamente os doutos bizantinos que passaram para o Renascimento italiano aquela tradição, com todas as incrustações de que falamos, às quais ainda se acrescentaram depois também algumas incrustações provenientes do platonismo latino-medieval.
Os doutos bizantinos afluíram para a Itália em três momentos sucessivos: 1) em princípios do século XIV, foram chamados a ensinar (cf. acima) homens como Emanuel Crisolora, que criou a tradição de estudos gregos em Florença; 2) a partir de 1439, verificou-se um afluxo maciço, por ocasião do Concilio de Ferrara-Florença, no qual se discutiu a união da Igreja grega com a romana; 3) a partir de 1453, houve uma verdadeira diáspora de doutos gregos, em virtude da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos.
Hoje, já está bem claro para os historiadores que essa afluência de doutos gregos para a Itália não gerou o renascimento dos estudos dos clássicos gregos (que, como já vimos, tem raízes muito mais profundas), mas movimentou-o e promoveu-o notavelmente.
No que se refere particularmente aos conteúdos filosóficos relativos ao renascimento neoplatônico, esses doutos não contribuíram com elementos originais. O único ponto de destaque foi a polêmica que fomentaram sobre a “superioridade” de Platão em relação a Aristóteles. Jorge Gemisto Pleton (1355-1452, aprox.) sustentou vivamente a claríssima superioridade de Platão, chegando até mesmo a propor uma forma de neopaganismn com bases platônicas.
Contra ele, Jorge Escolário Genádio (aprox. 1405-1472) defendeu tenazmente Aristóteles, coadjuvado (embora em outras bases) por Jorge Trapezúncio (1395-1486).
Uma tentativa de conciliação do conflito, conduzida com grande classe e com o auxílio de amplos conhecimentos, foi feita por Bessarion (aprox. 1400-1472), nomeado cardeal pelo papa Eugênio IV. Para ele, estabelecer a harmonia entre Platão e Aristóteles significava também criar uma base para unificar a Igreja grega com a romana. Por isso, Bessarion foi considerado o mais grego dos latinos e o mais latino dos gregos. Entre outras coisas, ficou famosa a sua tradução da Metafísica de Aristóteles. Entretanto, apesar de seus vastíssimos conhecimentos sobre as fontes, Bessarion também propôs e avalizou amplamente a interpretação neoplatônica de Platão (e não poderia ter sido diversamente, devido às razões que já explicamos).
Mas o grande relançamento do platonismo, do ponto de vista filosófico, iria acontecer por outros caminhos: por um lado, graças à obra de Nicolau de Cusa; por outro lado, através da obra da Academia platônica florentina, tendo à frente Ficino e, depois, Pico de Mirândola.
Rafael e os renascentistas imaginavam Platão como representado no quadro «Escola de Atenas» onde mostra muito bem o desejo de apresentar o fundador da Academia não apenas como o filósofo da transcendência por excelência, mas também como perfeitamente conciliável com Aristóteles, mostrando-o em uma atitude complementar em relação a ele (Platão aponta para o céu, Aristóteles para a natureza, de modo que um completa o outro; cf. pp. 14-15). Ademais, através do livro que lhe põe sob o braço, ou seja, o Timeu (que contém a síntese cosmológica), Rafael pretende indicar a possibilidade concreta de passagem da metafísica platônica aos interesses “naturalistas” aristotélicos.