Excertos de “Teísmo helênico e ateísmos actual”, de António Freire.
Para os antigos como para os modernos, o daimónion de Sócrates tem sido um enigma, verdadeira crux philosophorum. O daímon começou por ser o destino. Para os Gregos primitivos era daimónion, «demoníaco», tudo o que tinha carácter fatal, sobre-humano, que não obedecia a leis compreensíveis, que envolvia uma desgraça, que era temeroso.
Já no tempo de Cristo e na linguagem evangélica da Koiné popular, «possessões do demónio» designavam pessoas afligidas por doenças, cuja etiologia era desconhecida, mormente a histeria, a epilepsia e a esquizofrenia megalomaníaca. No período helenístico, empregava-se daimon, para designar toda a espécie de doenças, quer internas quer externas. Usava-se daimonion, segundo Foerster e Cortés, para designar as doenças internas de etiologia desconhecida.
Polignoto, imbuído de doutrinas órficas, pintou um demónio «que comia as carnes dos mortos, deixando apenas os ossos…».
Em Platão, os daímones eram seres intermediários entre os deuses e os homens: levavam até aos deuses as preces dos homens e traziam dos deuses graças para os homens. Na Apologia, o daimon era apenas uma divindade inferior; no Banquete, em que o amor (Eros) era um desses espíritos, o daimon é um colaborador do homem: Deus não se confunde com o homem, mas em virtude do mediador, estabelece-se certo comércio entre um e outro. O Eros torna o homem participante da divindade e esta presente no homem. O homem, invadido pelo amor, torna-se divino (theios on).
Para Heraclito, para Demócrito e para Epicarmo, o daímon era uma metáfora: o daímon do homem era o seu génio pessoal, o seu carácter ou modo de ser. Corria quase como aforismo de Heraclito a Epicarmo a frase: «o carácter é o démon do homem»; ou: «o carácter é para os homens um demónio bom, e para outros um demónio mau».
Em Menandro, o daímon assume o papel de bom guia, vive ao lado de cada homem, desde que nasce, e condú-lo pela senda da vida. Já Platão, uns decénios antes, dissera que cada um, ao morrer, é levado pelo daímon, que lhe tocara em sorte na vida, ao lugar do Hades ou morada dos mortos, onde há-de ser julgado. Num e noutro caso, o daímon assemelha-se ao Anjo da Guarda do pensamento cristão.
Em Sócrates, o daimónion é completamente diferente. É no interior do filósofo, o que o oráculo da Pítia era no mundo exterior: comunicação com o sobrenatural, com os deuses. Sócrates adorava esse daimónion, que era exclusivamente seu; por ele, punha-se directamente em comunicação com a divindade; com isso, provava que não negava os deuses, pois, por meio do seu daimónion, estava em constante comunhão com eles. Por isso, dizia Sócrates, em sua defesa: «Eu não trago um deus novo, quando falo do meu daimónion. Eu creio nesta voz divina, como vós credes nos sinais das aves ou no sentido profético que dais às palavras que ouvis por aí ao acaso. Esta voz não tem nada de novo, pois o que diz a Pítia não é mais do que a repetição duma voz divina».
Trata-se, pois, dum sentido interior que punha Sócrates em comunicação com o divino; é uma verdadeira interiorização dessa tradicional inspiração divina que se manifestava mais vaga e confusamente em oráculos e outras formas normais do culto.
A natureza do daimónion foi entendida por Sócrates como essencialmente negativa. É essa uma das diferenças fundamentais que distinguem Sócrates de tantos iluminados. O daimónion socrático nunca lhe dava ordens; só o dissuadia. Impedia-o, ora de que se fosse sem reparar uma falta, ora de que tratasse com certas pessoas, ora de que exprimisse a Alcibíades a sua afeição, ora de que se metesse em política.
A voz do daimónion socrático servia também para advertir os amigos. Assim, advertiu Timarco de que não saísse; e, se ele lhe tivesse dado ouvidos, não teria cometido homicídio. Igualmente preveniu Cármides de que não devia participar nos Jogos nemeus: se ele tivesse feito caso, não teria perdido o tempo no treinamento. Parece, até, que Sócrates previu, graças ao seu daimónion, a grande catástrofe da Sicília.
Quanto a si, Sócrates actuava com tranquilidade, quando o seu «demónio» guardava silêncio. Assim, como ele nada lhe dizia em contra da sentença de morte a que fora condenado, concluía que essa morte não seria para ele um mal. De outro modo, essa voz, que para ele era infalível, como a voz da Pítia, intérprete de Apolo, teria impedido o discurso inepto que, em grande parte, foi responsável pela sua morte.
As interpretações do daimónion de Sócrates acumularam-se a partir de Dicearco. Os Estóicos, fiéis à sua ideia de ordenar todo o fenómeno religioso dentro da religião tradicional, reduzem o «demónio» a uma personalização das faculdades divinatórias concedidas a Sócrates.
O daimónion não é mais do que um desses intermediários que estabelecem a comunicação entre os deuses e os homens, apenas mais pessoal que os sonhos ou as visões adivinhatórias. S. Agostinho, na Cidade de Deus, considera o «demónio» socrático como um princípio fundamental do paganismo: influía nessa interpretação o demonismo tremendo que predominava no tempo do bispo de Hipona.
O que importa sublinhar é que, com o seu daimonion Sócrates nem negava Deus nem introduzia divindades novas. O que tinha, isso sim, era uma concepção já muito depurada e muito superior da verdadeira divindade; vivia em comunhão com ela; não se contentava com o primeiro grau helénico da atitude do homem para com Deus, que consistia na syngeneia ou parentesco, mas alcandorava-se ao cume ideal da religiosidade teológica grega (tão fortemente vincada em Platão), que consistia na semelhança com Deus (homoiosis theo) o mais íntima possível. Na Teologia cristã, Deus não se revela directamente a cada cristão,-nem comunica oracularmente com cada homem (ao menos de uma maneira geral): tudo o que Deus pode fazer pelas causas segundas, não o faz normalmente por Si; pelos profetas e, sobretudo, por seu Filho Jesus Cristo e pela Igreja, continuadora da obra do mesmo Cristo, Deus vai-se revelando e comunicando a Sua vontade.
Não seria o daimonion de Sócrates (sem pretensões ridículas de cristiianizar o que ainda estava longe de ser cristão) uma espécie de intuição de que Deus se manifesta ao homem, particularmente ao homem que o procura mais com o coração do que com a inteligência, como exigia Alexis Carrel? Que Sócrates era, mesmo do ponto de vista religioso, um homem fora de série, bem se pode inferir da resposta dada pelo oráculo de Apolo a Querifonte, um amigo de Sócrates. Perguntando ele ao oráculo de Delfos se haveria homem mais sábio do que Sócrates, o deus respondeu que não havia. Ficou Sócrates muito intrigado com tão enigmática resposta. Por um lado, sabia que o deus não podia mentir; por outro, tinha consciência de não ser sábio.
Decidiu-se a pôr à prova o oráculo. Interrogou um homem político, e verificou que aquele sabia menos do que ele. Talvez nem um nem outro entendessem lá muito da política; mas, enquanto aquele se julgava sabedor de tal ciência, embora de facto nada soubesse a respeito dela, ele, Sócrates, reconhecia a sua ignorância e mostrava o seu desejo de se instruir. De inquérito em inquérito, sempre com o mesmo resultado, Sócrates chegou à conclusão que a falsa sabedoria é a pior das ignorâncias; e que ele, sentindo que nada sabia, mas procurando instruir-se, se encontrava no caminho da verdadeira sabedoria…
Não menos do que o tão discutido daimónion de Sócrates, interessa para a história do pensamento teológico de Sócrates e Platão a criação da teoria das Ideias ou das Formas. Esta passa, geralmente, por platónica. A verdade, porém, é que foi Sócrates quem a criou: é, pois, criação socrática, embora a sua elaboração seja platónica. É possível que Sócrates a tenha recebido dos Pitagóricos. Aparece mencionada, pela primeira vez, no Fédon. Símias diz que, depois da morte de Sócrates, já não haveria quem a comentasse. A. Tovar afirma que a teoria das Ideias é «inteiramente platónica». Pelo contrário, Rafael Arrillaga Torréns não hesita em contraditá-lo, declarando que a teoria das Ideias «es eminentemente obra de Sócrates»80. Nos últimos diálogos platónicos, como nas Leis e em Epínomis, que são inteiramente de Platão, já não se mencionam as Ideias. No Parménides diz Sócrates: «Eu creio que a explicação mais plausível é que as Ideias existem na natureza como arquétipos, e as restantes coisas se parecem com elas e as imitam» 81. E logo Sócrates explica: «Mais razoável me parece o que vou dizer: que estas mesmas Formas permanecem na natureza à maneira de paradigmas e que as coisas se lhe assemelham e são como imagens delas, e que tal participação das coisas nas formas resulta não ser mais que uma representação destas.
Aristóteles, que a princípio abraçou a teoria das Ideias de Platão, para depois abandonar e criticar, talvez injustamente, essa teoria, procurava ressalvar Sócrates da responsabilidade dos erros que imputava a Platão: «Sócrates — diz Aristóteles — não outorgava existência separada nem aos universais, nem às definições. Os que vieram depois dele é que separaram e deram a esta classe de seres o nome de Ideias.
Que Sócrates admitia ideias inatas, como Platão, parece evidente, a julgar pelos seus famosos métodos da ironia e da maiêutica. No Ménon refere Platão um caso típico do processo maiêutico. Sócrates consegue, mediante uma série de perguntas apropriadas, arrancar do escravo de Ménon respostas que revelavam conhecimentos numa vida preexistente.
Como Platão, Sócrates era contemplativo. Não assim Aristóteles, o filósofo do senso comum, o naturalista, a quem faltava a nota da mística tão proeminente em Platão. A alma vivia em contemplação do mundo ideal, na vida preexistente. Por uma falta, que Platão nunca especificou, a alma foi precipitada na masmorra lóbrega do corpo, e os seus conhecimentos ficaram como que adormecidos. Pela maiêutica, Sócrates consegue extrair pensamentos adquiridos preexistentemente. Pela via dialéctica, que é o caminho próprio da alma unida ao corpo, Platão alcandora-se dos seres sensíveis, através do conhecimento matemático (dianoia) à contemplação (theoria) ou conhecimento intuitivo. Foi nesta acepção que os Pré-Socráticos haviam tomado a contemplação. Segundo Diógenes Laércio, Anaxágoras interrogado por que motivo viera ao mundo, respondera: «Para a contemplação (theoria) do Sol, da Lua e do Céu». Clemente de Alexandria diz-nos que Anaxágoras teria feito da contemplação e da liberdade da alma o fim da existência. Conta-se que, um dia, exprobraram ao filósofo de Clazómenes o desprezo pela sua pátria. Ele respondeu, apontando com a mão para o céu: «A minha pátria importa-me muitíssimo».
Em Platão, a contemplação é o remate de toda a dialéctica. Esta e o conhecimento através dos seres e objectos sensíveis. Culmina-a a contemplação que, embora seja «caça à realidade» (tou ontos thera), traduz já contacto com essa «realidade» por excelência, que são as Formas. «A contemplação platónica — escreveu Festugière — nÃo e a consideração nem a intelecção das essências ou dos primeiros princípios…
A theoria diz mais: implica um sentimento de «presença», um contacto com o Ser na sua existência; isto transcende a linguagem, a intelecção e o objecto «contemplado», está para além da oúcría; é inefável e indefinível».
Mas só mediante a catarse (katharsis) ou purificação de tudo o que é corpóreo é que a alma pode atingir a contemplação pura do mundo ideal, contemplação essa de que gozara já antes de se unir ao corpo.
Qual seja esse mundo ideal e qual a sua relação com Deus é o que veremos seguidamente em Platão.