Morente: Influência de Sócrates: o conceito.

Excertos de Manuel García Morente, Fundamentos de Filosofia

Mas a influência de Sócrates em Platão não é menos importante que a influência de Parmênides. Sócrates ensina a Platão umas quantas coisas de capital importância. Sócrates é um homem que não escreveu nunca uma linha e resulta que, depois de vinte e cinco séculos, falamos ainda dele com o mesmo interesse, às vezes com a mesma paixão como se estivesse vivendo hoje. É um caso único na história do pensamento humano.

Sócrates contribui para o cabedal da filosofia com umas quantas coisas de interesse fundamental. A primeira é a seguinte: Sócrates descobre o que denominamos os “conceitos”. Como descobre Sócrates os conceitos? Porque lhe ocorre aplicar às questões morais, às questões da vida moral, o método que os geômetras seguem ao fazer sua ciência. Que fazem os geômetras? Reduzem as múltiplas formas sensíveis, visíveis, dos objetos a um repertório pouco numeroso de formas elementares que chamam “figuras”. Os geômetras apagam, por assim dizer, as formas complicadíssimas da realidade sensível e analisam essas formas e as reduzem a polígonos, triângulos, quadriláteros, quadrados, círculos, elipses; um certo número reduzido de formas e figuras elementares. E então se propõem, de cada uma dessas formas ou figuras elementares, como se diz no grego, “dar a razão”, dar razão delas, explicá-las, dizer o que são, dar sua definição; uma definição que compreenda sua gênese e ao mesmo tempo as propriedades de cada uma dessas figuras.

A Sócrates ocorre o propósito de fazer com o mundo moral o mesmo que os geômetras fazem com o mundo das figuras físicas. No mundo moral há uma quantidade de ações, propósitos, resoluções, modos de conduta que se apresentam ao homem. Pois a primeira coisa que ocorre a Sócrates é reduzir essas ações e métodos de conduta a um certo número de formas particulares, concretas, a um certo número de virtudes; por exemplo: a justiça, a moderação, a temperança, a coragem. E logo, após ter feito de cada uma dessas virtudes ou formas primordiais da vida moral o mesmo que faziam os geômetras com suas figuras, aplica o entendimento, aplica a intuição intelectual, para chegar a dizer o que é a justiça, o que é a moderação, o que é a temperança, o que é a coragem, o que é o amor, o que é a compaixão etc. Ora: “que é?” significa para estes gregos “dar a razão disso”, encontrar a razão que o explique, encontrar a fórmula racional que o abranja completamente, sem deixar fresta alguma. E a essa razão que o explica, a esta fórmula racional denominam com a palavra grega logos, uma das palavras mais refulgentes do idioma humano; ilustre, porque dela provém a lógica e tudo aquilo que com a lógica se relaciona; ilustre também porque o credo religioso apossou-se dela, e a introduziu no latim com o nome de verbum, que se encontra até mesmo nos dogmas fundamentais de nossa religião: o Verbo divino. Essa é a tradução latina da palavra logos, que antes de Sócrates significava simplesmente conversa, palavra; possui desde então o sentido técnico filosófico que Sócrates lhe dá; e, a partir dele, possui em toda a filosofia um sentido muito variável, que variou muito no decorrer da filosofia, mas que primordialmente é a razão que se diz de algo. O que os geômetras dizem de uma figura, do círculo, por exemplo, para defini-lo, é o logos do círculo, é a razão dada do círculo Do mesmo modo, o que Sócrates pede com afã aos cidadãos de Atenas é que lhe deem o logos da justiça, o logos da coragem. Dar e pedir logos é a operação que Sócrates pratica diariamente pelas ruas de Atenas.

Pois que é este logos senão o que hoje denominamos “conceito”? Este é o conceito. Quando Sócrates pede o logos, quando pede que indiquem qual é o logos da justiça, que é a justiça, o que pede é o conceito da justiça, a definição da justiça. Quando pede o logos da coragem, o que pede é o conceito da coragem. Sócrates é, pois, o descobridor do conceito. Pois bem: o conceito de logos é algo que Platão recebe de Sócrates.

Mas para Sócrates o interesse fundamental da filosofia era a moral: chegar a ter das virtudes e da conduta do homem conceitos tão puros e tão perfeitos que a moral pudesse ser aprendida e ensinada como se aprendem e se ensinam as matemáticas, e que, por conseguinte, ninguém fosse mau. Porque a convicção de Sócrates é que aquele que é mau o é porque não sabe.

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