Leis

Excertos da tradução de HISTÓRIA DA FILOSOFIA, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira Filho

O sentimento de relatividade e de instabilidade das coisas humanas é particularmente vivo nas Leis, obra inconclusa da velhice de Platão. Está repleta de prescrições pormenorizadas que denotam a intenção muito clara de realizar uma reforma, talvez nas cidades sicilianas, que iriam ser restauradas após a morte de Dionísio. O problema das Leis é, como o do Timeu, um problema de mistos. Procuram-se, no caso, as proporções que deem à sociedade a maior estabilidade política similar às que davam ao cosmos duração imperecedoura. Para Platão, o estável e o perfeito é todo uno: “Interessa, antes de tudo, que as leis sejam estáveis” (797 a). Tudo, incluindo os brinquedos infantis, deve permanecer idêntico, de uma a outra geração. Qualquer mudança significa perturbação, quer se trate de um organismo ou de uma cidade. As leis não são objeto de verdadeiro respeito, a não ser que falte a memória de um tempo em que as coisas tivessem sido diferentes do que são agora; “e o legislador deve imaginar todos os meios para realizar esse estado de coisas na cidade”.

Alguns desses meios escapam a sua vontade, e são os que derivam da natureza. Um meio propício à manifestação do caráter seria uma região suficientemente isolada do mar e das outras cidades, para que não tenha ocasião de ser contaminada pelo comércio e pela influência dos demais. Essas seriam as oportunidades favoráveis, que não se devem senão aos deuses. Em compensação, o legislador pode limitar o número de cidadãos, escolhendo um número bastante diminuto e de qualidade tal que se multiplique no maior número possível.

Mas, sobretudo, ele é o orientador do misto que produzirá a constituição mais estável (691 c sq.). A história mostra-nos o exemplo de uma constituição que resistiu ao tempo: a de Esparta, que soube observar normas de moderação e se poupou de excessos. Os poderes de dois reis são, mutuamente, contrabalançados e se limitam com o do senado, onde o poder moderador dos anciãos se alia à força ardente da juventude; é limitado, igualmente, pelo poder dos éforos. “Dessa maneira, a realeza, incorporada a outros elementos e deles recebendo a correlata medida, conservou-se a si mesma e conservou o resto.” Ao contrário, a história revela a decadência da constituição persa, realeza liberal que se converte em tirania, e a da constituição democrática de Atenas, em que a liberdade conduz a uma anarquia sem peias. Há, portanto, duas constituições antitéticas: despotismo e democracia, “mãe de todos os outros”. Isoladas, ambas são más, mas o misto bem proporcionado produz a boa constituição (693 d).

Que é que impede a decadência (porque sempre, e aqui também, se trata da questão do freio que detém, e não de progresso positivo)? O impedimento virá da confluência harmônica entre a sensibilidade e a inteligência (689 a). A causa da decadência é o conceito de que é agradável o que se julga mau e injusto, e laborioso o que se julga justo. Em virtude dessa disposição de espírito, que é a pior das ignorâncias, a cidade não é, como deveria ser, “amiga de si mesma” (701 d).

Platão dá-se conta de que não basta a pura inteligência; é necessário, ainda, disposição livre e voluntária. O legislador deve, pois, obter o assentimento, não pela violência, mas pela persuasão (887 a sq.). Daí, o uso de prólogos que explicam os motivos de obediência às leis (719 c- 723 b). Essa exposição de motivos, que é também uma prédica moral, constituía uma inovação legislativa.

Os resultados dessa forma de assegurar a estabilidade social mediante a fé arraigada nos espíritos, são particularmente claros no livro X, concernentes às crenças religiosas. A impiedade é ali tratada, sobretudo, como perigo social. O ateísmo, combatido por Platão, é o dos sofistas, que consideravam os deuses invenções humanas (891 b-899 d). Os negadores da providência, que ele refuta, não são os teóricos, mas pessoas que dão livre curso a suas paixões, porque não acreditam que a justiça divina intervenha nos assuntos humanos (899 d – 905 d). Finalmente, a crença errônea de que se possa seduzir Deus, por meio de preces, se relaciona a toda uma série de práticas culturais e rituais que implicam associações privadas, danosas para a vida social (905 d -907 b)1. Mas, se é preciso, em primeiro lugar, prevenir a impiedade por mediação de argumentos racionais, como se verifica em Platão, também se faz imperioso prever penalidades severas para os que não querem se convencer. Segundo os casos, a prisão temporária ou a prisão perpétua afastam da cidade esses perigosos ímpios (908 a sq.).

A última palavra de Platão, como político, exprime a serenidade contemplativa do sábio que percebe as forças abscônditas que levam os homens a agir. “As coisas humanas não devem ser tomadas muito a sério… O homem é um entretenimento de Deus, um mecanismo para ele” (803 b). O legislador é, em primeiro lugar, aquele que conhece esse mecanismo e sabe conduzir os homens.


Les Lois (en grec : Νόμοι) sont le dernier dialogue de Platon. C’est aussi le plus long et le seul où Socrate n’apparaît pas. Il traite, tout comme la République, de philosophie politique et touche au problème de la meilleure constitution politique. Comme dans la République, Platon vise dans les Lois la constitution de la cité la meilleure possible en prenant pour modèle le juste selon les dieux. Dans les deux cas, ce modèle est l’image que les dirigeants doivent suivre pour unifier une cité et la rendre entièrement vertueuse, sans qu’il soit cependant possible de l’instituer réellement. Platon est toutefois plus « empirique » dans les Lois, puisqu’il examine des constitutions réelles et propose une description très détaillée d’une constitution aussi juste que possible. (Cousin)


  1. Cf. 909 b, sobre o perigo das associações religiosas independentes da cidade. 

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