A Alma e a Morte

Recolhemos no Fédon, a tentativa de definir a alma como ser imortal (athánaton) e indestrutível (anôlethron) (107a), podendo separar-se do corpo e sendo-lhe superior no conhecimento da verdade dos seres (65b-d); ela é anterior ao corpo, portanto autônoma até que tome forma humana – e entre no discurso imagético da geração – (73a,76e); é uma existência, uma ousía (78d) que se assemelha à forma invisível (79b), tem movimento, participa do uno (81c,84b) e seu pâthos perfeito, se não houvesse a mistura com outras naturezas, é o pensamento (phrónêsis), indício de sua proximidade com o divino (79d). Assim, ela não é a harmonia pretendida por Pitágoras (93a,s), ao menos no Fédon, mas diretora de todas as manifestações viventes (94d) como no Timeu e nas Leis. A proximidade das noções platônicas com as do orfismo e dionisismo é, por outro lado, pequena, pois ao invés da aceitação pura e simples da imortalidade e superioridade da alma, necessárias para a crença em outras vidas, em Platão elas são fundamento para a vida historicamente dada e sua possível transformação, uma vez que é na alma que está o conhecimento do homem de sua vida social, de sua felicidade. Dizer que no Fédon a alma é imortal, indestrutível e móvel, diretora dos viventes e superior ao corpo, é afirmar que o homem tem um poder inquebrantável de mover-se no conhecimento e transcendência, independente das particularidades históricas, poder esse universal e imortal dela proveniente e vivenciado através da perene capacidade de pensar. Por isso Sócrates não se importa em morrer, uma vez que, na mudança da perspectiva física e religiosa para a metafísica, morrer significa deixar a “senda e opiniões dos mortais”, como disse o mestre Parmênides em seu poema, para “viver” junto à deusa, isto é, adentrar na vida ou na via da verdade da deusa. Essa via, como diz Sócrates a Símias, é a do lógos:

“…Refleti que devia buscar refúgio no lógos e procurar nele a verdade das coisas… Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, o lógos que é, a meu juízo, o mais sólido, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro…” (99e, 100a).

Nesse sentido vai a interpretação de Festugière, quando diz que Sócrates mostra a inconsequência que seria “…da parte do sábio, irritar-se na hora da morte, pois é então que ele atinge o fim de sua procura, a conclusão imediata desse parágrafo (que) é uma retomada da palavra inicial… o homem que se irrita por morrer não é ‘amigo da sabedoria’.1

Morrer, metaforicamente, é “esquecer” o conhecimento corpóreo e encontrar-se com o conhecimento mais divino e sem resquício do sensível – com as ideias. Sócrates cria um jogo no Fédon, um jogo não de palavras, como fez Ulisses com o Ciclope, mas de encadeamentos significativos, como se brincasse com os mais diversos planos de crenças sobre a alma e sua imortalidade. Tal postura, aliás, é repetidamente exposta em quase todos os diálogos. Eis, então, o que é a alma pela via filosófica: uma ousía imortal, vivente, partícipe do uno, dirigindo tudo o que tem vida; é, enfim, a existência mais próxima do divino pela potência que tem de pensar. Será esta uma tentativa de definir através dos atributos essenciais e não-essenciais? Parece-nos que sim. E há mais uma dificuldade. Como a alma aparece no ser humano unida ao corpo que é mortal, múltiplo, visível, Platão une contrários num só ser, o homem, o que lhe vai exigir muitas outras considerações. Por ora, ao menos no Fédon, ao resgatar da tradição algumas afirmações que têm suas significações específicas dentro de um sistema mítico-religioso e de uma linguagem inaugurada pelos primeiros físicos, ele as transfere para o campo metafísico, onde a importância da imortalidade, por exemplo, relaciona-se, tão-somente, ao conhecimento da verdade e ao exercício reflexivo; mais ainda, transmuta a crença na pureza da alma e impureza do corpo para a perspectiva gnoseológica, adequando-a aos graus do conhecimento que o homem pode adquirir, desde os chamados mais impuros (sensíveis) aos mais puros (ideais), utilizando, por ora, uma vertente simplificada da sua consagrada dualidade. A laicização é clara.

Mas a alma não é definível somente a partir do homem e de sua morte e vida gnoseológicas. Da perspectiva da physis nas Leis e em parte no Fedro, e de seu aprofundamento na visão cosmológica do Timeu, Platão continua sua tentativa de definir a alma; a dificuldade para falar dessa ousía permanece a mesma que ele aponta ao seu interlocutor no Mênon quando, ao indagá-lo sobre o que é a virtude, este responde seja pelos seus possíveis atributos, seja pelos seus efeitos, seja pelos valores particulares que uma época lhe dá.


  1. Op. cit, p. 81.