A pneumatologia de Henry More

A pneumatologia de Henry More não nos interessa aqui. Entretanto, como a noção de espírito desempenha papel importante em sua interpretação da natureza (e não somente na dele) e é usada por ele (e não somente por ele) para explicar processos naturais que não podem ser explicados ou “demonstrados” através de leis puramente mecânicas (como o magnetismo, a gravidade etc), temos de nos deter alguns instantes em examinar como ele concebe o espírito.

Henry More estava plenamente consciente de que a noção de “espírito” era, no mais das vezes, apresentado como inconcebível, pelo menos para a mente humana.

Mas, quanto a mim mesmo, julgo que a natureza de um espírito é tão concebível e fácil de ser definido como a natureza de qualquer outra coisa. Pois, pois naquilo que concerne à própria Essência ou à nua Substância de não importa qual coisa, apenas um Noviço em especulação não as reconhece como completamente incognoscíveis; mas quanto às Propriedades Essenciais e Inseparáveis, não tão inteligíveis e explicáveis num Espírito como em qualquer outro Sujeito. Como exemplo, concebo que a Ideia completa de um Espírito em geral ,ou pelo menos de todos os Espíritos finitos, criados e subordinados, consiste nessas várias propriedades e poderes seguintes: Auto-penetração, Auto-moção, Auto-contração e Dilatação e Indivisibilidade; são estas as que julgo mais fundamentais; acrescento aquelas que têm relação com outras [substâncias], e que são o poder de Penetrar, Mover e Modificar a Matéria. Essas Propriedades e Poderes, reunidos, constituem a Noção e Ideia de um Espírito, pelas quais este se distingue claramente de um Corpo, cujas partes não podem penetrar umas nas outras, não é Auto-motor, nem pode se contrair ou dilatar, e cujas partes são divisíveis e separáveis umas das outras; mas as partes de um Espírito não podem ser separadas, da mesma forma que não podemos cortar os Raios do Sol com um par de tesouras feitas de Cristal transparente. Isto basta para fixar a Noção de um Espírito. E dessa descrição resulta claramente que o Espírito é uma noção de maior Perfeição do que um Corpo e, portanto, mais apto a ser um Atributo do que é absolutamente Perfeito do que um Corpo.

Como vemos, o método usado por Henry More para chegar à noção ou definição de um espírito é bem simples. Temos de lhe atribuir propriedades opostas ou contrárias às de um corpo: penetrabilidade, indivisibilidade e a faculdade de se contrair ou dilatar, ou seja, estender-se, sem solução de continuidade, a um espaço menor ou maior. Esta última propriedade por muito tempo tinha sido considerada como característica também da matéria, mas Henry More, sob a influência conjunta de Demócrito e Descartes, nega-se à matéria ou corpo, que é, como tal, incompressível e sempre ocupa a mesma quantidade de espaço.

Em A Imortalidade da alma, Henry More nos dá uma explicação ainda mais clara de sua noção de espírito, assim como do modo pelo qual essa noção pode ser determinada. Além disso, ele procura introduzir em sua definição uma espécie de precisão terminológica. Assim, ele diz que “por Divisibilidade Atual entendo Discerpibilidade, a possibilidade de romper ou destacar uma parte da outra”. É óbvio que essa “discerpibilidade” (separabilidade) só pode pertencer a um corpo, e que não se pode romper e separar um pedaço de um espírito.

Quanto à faculdade de contração ou dilatação, More a atribui à “espessura [spissitude] essencial” do espírito, uma espécie de densidade espiritual, quarto modo ou quarta dimensão da substância espiritual que ele possui, além das três dimensões normais de extensão, de que somente os corpos são dotados. Assim, quando um espírito se contrai, sua “espessura essencial” aumenta; e diminui, naturalmente, quando ele se dilata. Não podemos, com efeito, imaginar esta “espessura”, mas esse “quarto Modo”, diz-nos Henry More, “é tão simples e familiar a meu Entendimento como as Três dimensões a meus sentidos ou Imaginação.”

Então, a definição de espírito se torna bem simples:

Definirei pois um Espírito em geral da seguinte maneira: Uma substância penetrável e indiscerpível [inseparável]. A justeza desta definição será melhor compreendida se dividirmos a Substância em geral nos Gêneros primeiros seguintes: Corpo e Espírito, e, a seguir, definirmos um Corpo: Uma Substância impenetrável e discerpível [separável]. Assim, o Gênero contrário é convenientemente definido: Uma Substância penetrável e indiscerpível.

Agora, apelo para qualquer homem capaz de pôr de lado o preconceito, e que goze do livre uso de suas Faculdades, [para nos dizer] se cada termo da Definição de um Espírito não é tão inteligível, e conforme a Razão, como a de um Corpo. Pois a Noção precisa de Substância é a mesma nos dois, [noção esta] na qual concebo estarem inclusas a Extensão e a Atividade, quer inatas, quer comunicadas. Pois a Matéria, uma vez posta em movimento ,pode mover outra Matéria. E é tão fácil compreender o que é [ser] Penetrável como Impenetrável, e o que é [ser] Indiscerpível como Discerpível; e sendo a Penetrabilidade ou a Indiscerpibilidade tão imediatas ao Espírito quanto a Impenetrabilidade ou a Discerpibilidade ao Corpo, há tanta razão para se considerá-las Atributos de um como de outro, segundo o Axioma . Ora, não compreendendo a Substância, em sua noção precisa, mais Impenetrabilidade do que Indiscerpibilidade, o fato de um gênero de Substância manter suas partes umas foras das outras, de maneira a torná-las impenetráveis umas pelas outras (como, por exemplo, a Matéria faz para as partes da Matéria), poderia ser tanto motivo de espanto como o fato de as partes de uma outra substância se manterem de tal forma juntas que não sejam de modo algum Discerpíveis. Por conseguinte, sendo a desunião das partes de um ser tão difícil de entender quanto a união das partes de outro, isso não pode prejudicar a noção de um Espírito.

Duvido que o leitor moderno — mesmo que ponha de lado o preconceito e faça livre uso de suas faculdades — aceite a afirmativa de Henry More de que é tão fácil, ou tão difícil, formar o conceito de espírito quanto o de matéria. Ou que, embora reconhecendo esta última dificuldade, não compartilhe a “convicção” de certos contemporâneos de More, segundo os quais “a própria noção de Espírito é um exemplo de Absurdo e absoluta Incongruidade”. O leitor moderno terá razão, naturalmente, em rejeitar o conceito de More, calcado obviamente sobre a ideia de um fantasma. No entanto, estará errado ao supor tratar-se de pura e simples absurdeza.

Em primeiro lugar, não nos esqueçamos de que para um homem do século XVII a ideia de uma entidade extensa e imaterial não ora de modo algum estranha ou mesmo incomum. Muito pelo contrário: tais entidades estavam representadas abundantemente, tanto na vida diária desses homens quanto em suas experiências científicas.

Para começar, havia a luz, coisa certamente imaterial e incorpóreo, mas que não só se estendia no espaço como também era capaz de, apesar de sua imaterialidade, agir sobre a matéria e sofrer os efeitos desta, como Kepler não deixa de sublinhar. Não oferecia a luz um exemplo perfeito de penetrabilidade, bem como de poder de penetração? Com efeito, a luz não impede o movimento dos corpos através dela, e pode também atravessar copos, pelo menos alguns deles; além disso, no caso de um corpo transparente atravessado pela luz, vemos claramente que matéria e luz podem coexistir no mesmo lugar.

O desenvolvimento moderno da ótica não destruiu, mas, pelo contrário, parece confirmar essa concepção: uma imagem real produzida por lentes ou espelhos certamente possui forma e localização determinadas no espaço. Entretanto, é a luz um corpo? Podemos rompê-la ou “separá-la”, cortar e destacar um pedaço dessa imagem?

De fato, a luz possui quase todas as propriedades do “espírito” de More, as de “condensação” e de “dilatação” inclusas, e até mesmo aquela propriedade de “espessura essencial”, que poderia ser representada pela intensidade da luz, que varia tanto quanto a “espessura”, com sua “contração” e sua “dilatação”.

E se a luz não fosse suficientemente representativa dessa espécie de entidade, havia as forças magnéticas, que para William Gilbert pareciam pertencer muito mais ao domínio do ser animado do que ao do ser puramente material; havia a atração (gravidade), que atravessava livremente todos os corpos, sem ser detida ou mesmo modificada por nenhum deles.

Além disso, não nos esqueçamos de que o “éter”, que representou um papel tão importante na física do século XIX (tanto quanto a do século XVII, senão mais, essa física afirmava a oposição entre a “luz” e a “matéria”, e mesmo hoje essa oposição não está completamente superada), exibia um conjunto de propriedades ainda mais assombrosas do que as do “espírito” de Henry More. E, finalmente, não nos esqueçamos de que a entidade fundamental da ciência contemporânea, o “campo”, é uma coisa que possui localização e extensão, penetrabilidade e inseparabilidade. . . De modo que, um tanto anacronicamente, é claro, podemos assimilar os “espíritos” de More, pelo menos os de espécie inferior, inconscientes, a alguns tipos de campos.