A questão do ser nas doutrinas da Antiguidade [Boutot, 1987]

No Sofista, Platão aborda a questão do ser remetendo para as grandes doutrinas da Antiguidade. Distingue dois grandes grupos de doutrinas: as doutrinas pluralistas do ser, que aplicam o nome ser a realidades múltiplas e heterogéneas (húmido e seco; quente e frio, por exemplo), e as doutrinas monistas ou unitárias do ser, para as quais o ser se reduz a um único tipo de realidade. Mas uma análise destas doutrinas mostra imediatamente que nenhuma delas pode dar um sentido satisfatório ao ser. As doutrinas dualistas, por exemplo, contradizem-se porque, ao definirem o ser como um par de realidades opostas e heterogêneas, são obrigadas a reconhecer que o próprio ser, que não pode ser assimilado a nenhuma destas duas realidades tomadas separadamente, é um “terceiro termo” e que o Todo não é dois, como pretendem [37], mas três: para além das duas realidades iniciais, deve ser colocada uma terceira “realidade”, a saber, o próprio ser. As doutrinas unitárias, por outro lado, se entendem que a palavra ser significa a mesma coisa que a palavra um, como devem fazer, uma vez que definem o ser pela unidade, usam dois nomes para designar uma única e mesma realidade, o que é “um tanto ridículo”, diz Platão, “quando se acaba de postular um e nada mais”1. As doutrinas unitárias, tal como as doutrinas pluralistas, conduzem a dificuldades sem número, de modo que é “por miríades e por miríades intermináveis, declara o Estrangeiro, que surgirão, em cada caso, aporias (απορίας) para quem quer que defina o ser ou por algum par, ou por uma unidade estrita”2.

A discussão do problema do ser continua, no entanto, com o exame de duas doutrinas monistas particulares: os materialistas ou “filhos da terra”, por um lado, e os idealistas ou “amigos das formas”, por outro. Os primeiros não reconhecem nenhum ser para além dos corpos e nenhuma realidade para além do movimento. Os segundos, pelo contrário, equiparando o ser à inteligibilidade, consideram o movimento e o devir como não-entes e congelam o ser numa existência imutável. Platão vira estas duas doutrinas ao avesso. À primeira, mostra que o repouso é necessário para que o intelecto se possa exercer e para que o conhecimento seja possível: “Se concordarmos em pôr em tudo a translação e o movimento”, diz o Estrangeiro, “isso será retirar (o) intelecto (νοῦς) da categoria dos entes”3. A estes últimos, opõe que não é plausível acreditar, como eles, que “o movimento, a vida, a alma, o pensamento, não têm realmente lugar dentro do ser universal, que este não vive nem pensa, e que, solene e sagrado, vazio de intelecto, permanece ali, plantado, sem poder mover-se”4. Para que as Ideias que defendem tenham o poder de serem conhecidas, os “amigos das formas” devem concordar em introduzir nelas o movimento. Pois ser conhecido é uma “paixão (πάθος)”, e “sofrer”, diz o Estrangeiro, “não tem lugar no que está em repouso”5. Devemos, portanto, conclui Platão, postular tanto o repouso quanto o movimento no ser, e isso contra os materialistas e idealistas que admitem apenas um ou outro. Mas então o “mistério” do ser, [38] longe de ser esclarecido, é redobrado. Pois se admitimos que o movimento e o repouso são, então temos que admitir que não há duas, mas três realidades: movimento, repouso e o próprio ser. Se o ser fosse idêntico ao movimento ou ao repouso, ele seria o mesmo que o ser. Se o ser fosse idêntico ao movimento ou ao repouso, então, ao afirmarmos o movimento ou o repouso, estaríamos a afirmar o movimento como repouso ou o repouso como movimento, o que é manifestamente absurdo. É, portanto, “como um terceiro termo (τρίτον τι)”, diz Teeteto, “que o ser se revela, quando, falando do repouso ou do movimento, dizemos que eles são”6. O ser é um terceiro termo, para além destes dois grandes gêneros: o movimento e o repouso, que partilham a realidade de um certo modo. Mas a posição do ser como outro, e mais precisamente como outro que não o movimento e o repouso, não é evidente. Parece que tudo o que existe tem necessariamente de estar em movimento ou em repouso, e que não há nada fora do movimento e do repouso. “Pois como”, pergunta o Estrangeiro, “pode aquilo que não se move não estar em repouso? Ou que aquilo que não tem qualquer tipo de repouso não esteja em movimento? Mas o ser, para nós, neste momento, tem-se mostrado manifestamente fora desta alternativa. Será isto então possível?”, ao que Teeteto responde: ‘É tanto mais impossível’7. A posição do ser como algo diferente do movimento e do repouso é, portanto, altamente problemática. A indagação platônica sobre o ser conduz a um embaraço, a uma aporia (άπορία) que, como o próprio Teeteto admite, é ainda maior, se é que isso é possível, do que aquela em que o não-ser já o tinha mergulhado e que já era, como o Estrangeiro lhe recorda, totalmente inextricável, “extrema”8. A questão do ser permanece uma questão no Sofista.

No entanto, mesmo que não o consiga, a discussão do problema do ser no Sofista talvez testemunhe, mesmo no seu carácter aporético, o pressentimento do próprio Platão daquilo que constitui, para Heidegger, uma das determinações essenciais do ser. De fato, a aporia surge, de certa forma, da obrigação que temos de colocar o ser como um “terceiro termo”, como “outro”. O ser é diferente do movimento e do repouso e, de um modo mais geral, diferente de tudo o que não é o ser e que, no entanto, dele participa9. O ser é, pois, parece dizer Platão, diferente de tudo o que é, ou, em linguagem heideggeriana, diferente do ser. No fundo, tudo se passa [39] como se Platão tivesse vislumbrado uma dimensão fundamental do ser: o ser na medida em que é o diferente, o próprio outro do ser10.

[BOUTOT, A. Heidegger et Platon: Le problème du nihilisme. Paris: PUF, 1987]
  1. Ibid., 244 c 9. 

  2. Ibid., 245 d 12. 

  3. Ibid., 249 b 8-10. 

  4. Ibid., 248 e 7 – 249 a 2. 

  5. Ibid., 248 e 4-5. 

  6. Ibid., 250 c 1-2. 

  7. Ibid., 250 d 1-5. 

  8. Ibid., 250 d 9. 

  9. Cf. ibid., 259 b 1 

  10. Reconheçamos, no entanto, que Heidegger não faz qualquer menção, nas obras atualmente publicadas, a esta possível aproximação entre o pensamento de Platão e o seu próprio pensamento. Deveremos concluir daí que essa comparação é abusiva? Seria certamente útil conhecer o curso que ele deu sobre o Sofista em 1924-1925 [GA19], que ainda não foi publicado, para poder emitir um juízo sobre o assunto. 

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