Se, na verdade alvorece uma época que se há-de caracterizar pela renúncia ao Mito do Homem criador, e não «receptor de cultura», que aceita sem constrangimento o mundo que lhe é dado, os que sempre lhe foram dados por Fulgurações Ofuscantes, temos de admitir a contragosto da nossa incondicionada e incondicionável «vontade de poder», que o transobjetivo, o eminentemente Real envolve como um só horizonte, todos os mundos já vistos ou que havemos de ver, juntamente com a nossa irredutível subjetividade. Expliquemo-nos, sabendo, embora, que nos é defeso o recurso a qualquer parâmetro do explicativo, pois todos aplicados como o forem, sempre deixam resíduos de implicação no mais profunda e pormenorizadamente explicado: a exploração tende para um limite que ela só pode sugerir. Agora, o nosso esforço por alcançar o impossível, incidirá principalmente naquelas «fulgurantes ofuscações» e na «irredutível subjetividade». Real, Ser, Deus ou Absoluto são paradoxalmente «cogitados» sem «cogitação», ou um cogitado que excita uma cogitação que o não tem por término. Por isso, a designação mais apropriada, conformemente à etimologia, talvez fosse a de Secretum ou Absolutum, ambos com o sentido de «separado». Mitologicamente, poder-se-ia adjetivá-lo de «Caótico», não com o significado de «confuso», mas de «excessivo». Que, por vezes, a excessividade caótica se contenha e, contendo-se, fulgure, e, na fulguração, se desoculte na parte que não nos ofusca os olhos do corpo e da alma – esse é o mistério de toda a cosmogonia. Um mundo é isso: o que vemos à luz fulgurante do raio arremessado por aquele «que quer e não quer ser chamado pelo nome de Zeus». Mas a fulguração é ofuscante: Realidade, Ser, Deus, Absoluto ou Excessividade Caótica incontida, fica oculta a nossos olhos ofuscados pela excessiva luz do grande relâmpago cosmogônico. O raio dura um momento que não se mede por segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos ou séculos sem conta. Em tudo isto, só nos esquecemos de que a mesma luz também nos gerou, vindo nós a ser como o mundo é, configurados à semelhança da mesma contenção fulgurante. Não será esse o motivo porque à cosmogonia ou à teocosmogonia, tem de seguir-se uma antropogonia? Para nós, homens, estar no mundo significa mais do que habitá-lo, queiramo-lo ou não; significa o apossarem-se um do outro, homem e mundo, o pertencerem um ao outro, o serem um do outro, sejam eles o que forem, de cada vez que forem. Mas há uma parte de nós, a melhor parte de nós, tão secreta, tão absoluta, tão excessiva como a Suprema Excessividade, como o mais Selado Segredo, como o mais Separado Absoluto. Uma parte de nós que continua habitando na Fulguração Ofuscante – possuída por Ela, pertencendo a Ela, sendo como Ela: é a nossa «irredutível subjetividade», aquela que nunca será objeto, porque é a condição de toda a objetividade» – e agora, aí temos a nossa semelhança ou a nossa identificação com a Realidade, o Ser, Deus ou o Absoluto, residindo acima ou abaixo de todos os efetivados ou efetiváveis processos de objetivação. E aquela que o Real desafia, é aquela que desafia o Real, para além e por sobre todo o objeto que mora ou se demora em mim e fora de mim, do que foi constituído em homem diante do mundo; dois aspectos complementares da mesma fulgurância ofuscante do mesmo raio desferido por quem não quer chamar-se apenas de Zeus. Adiante, por muito menos palavras nos referiremos ao que ficou escrito neste parágrafo.
Mas, voltando ao que antes dizíamos. No mesmo ponto importa fixar uma segunda conclusão. No mundo mítico, nesse mundo criado, projetado ou «objetivado» pelo próprio acontecer do mito, não existe nem Homem, nem Deus nem Natureza. E isto quer dizer que nem Deus, nem Homem, nem Natureza são personagens do drama que se representa em mitologia. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)