Afrodite

VIDE: Enéada III,5; Platão (Banquete:180c-185e) – Duas Afrodites; PlotinoTratado 50,3 (III, 5, 3) — O deus Eros nasceu da Afrodite celeste que representa a alma divina

Junito Brandão

Afrodite é o símbolo das forças irrefreáveis da fecundidade, não propriamente em seus frutos, mas em função do desejo ardente que essas mesmas forças irresistíveis ateiam nas entranhas de todas as criaturas. Eis aí o motivo por que a deusa é frequentemente representada entre animais ferozes, que a escoltam, como no hino homérico a que aludimos. Nesse hino, a deusa do amor mostra todo o seu poderio e força não apenas sobre os animais, mas até mesmo sobre o próprio Zeus:

Ela transforma até mesmo o juízo de Zeus, o deus dos raios, o mais poderoso de todos os Imortais; e embora seja tão sábio, a deusa faz dele o que quer… Quando escala o Ida de mil fontes, seguem-na, acariciando-a, lobos cinzentos, fulvos leões, ursos, velozes panteras, ávidas de procriar. Ao vê-los a deusa se enche de alegria e lhes instila o desejo no peito.

Então dirigem-se todos, para se acasalar à sombra dos vales. (Hino a Afrodite, 36-38 e 68-74).

Eis aí o amor única e exclusivamente sob forma física, traduzido no desejo e no prazer dos sentidos. Ainda não é o amor elevado a um nível especificamente humano. A esse respeito P. Diel faz o seguinte comentário: “Num plano mais elevado do psiquismo humano, onde o amor se completa no elo com a alma, cujo símbolo é a esposa de Zeus, Hera, o símbolo Afrodite exprimirá a perversão sexual, porque o ato de fecundação é buscado apenas em função da primazia do prazer outorgado pela natureza. A necessidade natural se exerce, portanto, perversamente”.

O mito da deusa do amor poderia, assim, permanecer, por um longo tempo ainda, a imagem de uma perversão, a perversão da alegria de viver e das forças vitais, não mais porque o desejo de transmitir a vida estivesse alijado do ato de amor, mas porque o amor em si mesmo não seria humanizado. Permanecería apenas como satisfação dos instintos, digno de animais ferozes que formavam o cortejo da deusa. Ao término de tal evolução, no entanto, Afrodite poderia reaparecer como a deusa que sublima o amor selvagem, integrando-o numa vida realmente humana.

Mário Meunier

Acredita-se que Afrodite ou Vênus, a mais bela das Deusas, era primitivamente venerada como uma Deusa da luz, considerada não somente na magnificencia variada de suas manifestações no Céu, mas também em sua ação fecunda na superfície da Terra. Não é então na serenidade da luz que as rosas parecem desabrochar, e que a seiva renova, na primavera, a basta cabeleira das florestas? Com o tempo, a Deusa que surgia na estação que é para o ano o que a aurora é para o dia, tornou-se a rainha da beleza do mundo, a eterna soberana por quem tudo quanto respira chega à existencia. Ora, se tudo que é belo inspira o amor, a Deusa, que criava e propagava a beleza em tudo quanto tem vida, devia também naturalmente tornar-se a Divindade da sedução, que nos leva a amar tudo o que nos parece belo.

Deusa de suave sorriso, Afrodite nasceu da espuma das vagas. Branca e pura como a alva num mar prateado, dizem que ela apareceu, pela primeira vez, nas costas brilhantes de Chipre. O sopro úmido de Zéfiro havia impelido, durante muito tempo, sobre as ondas murmurantes, a concha nacarada que continha a Divina. Quando aquela chegou à praia, suas duas valvas abriram-se e Afrodite saltou desse berço marinho. A medida que caminhava pela areia, as flores brotavam-lhe sob os pés delicados. As Horas, com pequenas tiras de ouro circundando a testa, acolheram-na, enxugaram-lhe o corpo gotejante de água salgada, torceram-lhe a loura cabeleira e ataviaram-na com vestimentas perfumadas. sobre sua cabeça colocaram uma coroa de ouro, fixaram-lhe às orelhas pendentes de flores em metal precioso e enlaçaram ao redor de seu pescoço e no argenteo colo, colares resplendentes. Terminado o ataviamento, as Horas bondosas fizeram avançar um carro puxado por duas pombas. Afrodite nele subiu e abalou para junto dos Imortais. Diante do espetáculo de sua radiante beleza, a assembleia dos Deuses pôs-se toda em pé. Todos saudaram-na como uma nova rainha, fazendo-a sentar-se num alto trono. Desde então Afrodite reina sobre os Felizes do Olimpo. A graça luminosa que brilhava em seus olhos, o encanto impressionante de seu divino sorriso, a harmonia dos gestos, a nobreza real do andar augusto e dos suntuosos adornos tornaram-na, para todos os Imortais, um espetáculo duradouro de enlevo e alegria.

[…]

Não satisfeita, no entanto, em submeter ao suave império de sua irresistível sedução todos os celestes habitantes do Olimpo, Afrodite reinou também como senhora absoluta sobre o coração de todos os homens. Pelos doces desejos com que os inflamava, podia, à sua vontade, fazer nascer neles o amor, cumulá-los de felicidade ou faze-los experimentar males intoleráveis. O amor, com efeito, não é sempre correspondido e se os amorosos, que Afrodite protegia, conheciam a paz e a felicidade, os infelizes que ela perseguia, debatiam-se no meio das mais cruéis inquietudes, pois nada é mais atroz que amar sem ser amado.

Todavia, o poder de Afrodite não se limitava exclusivamente a reinar sobre os corações dos homens e dos Deuses. Seu império estendia-se sobre a Natureza inteira. No mar, dominava como senhora luminosa: bastava seu aparecimento para que as vagas em tumulto se acalmassem, os ventos de repente se apaziguassem e o Céu radioso sorrisse nas ondas. Na Terra, sua fecundidade mantinha por todos os lugares a vida inesgotável, e o renascimento da vegetação devia-lhe a riqueza de sua floração. Como em nenhum momento a atividade fecunda dessa Deusa, adorada nos jardins floridos e nos frescos bosques, manifestava-se com tanta opulencia como no brilho luxuriante da primavera, era principalmente na estação das flores que se celebrava o aparecimento de Afrodite.

Robert Graves

Afrodite (Vênus), deusa do desejo, surgiu nua da espuma do mar e, cavalgando uma concha de vieira, onde primeiro pôs os pés foi na ilha de Citera. Porém, considerando-a apenas uma ilhota, cruzou o Peloponeso e, finalmente, passou a residir em Pafos, no Chipre, ainda hoje a principal sede de seu culto. Plantas e flores cresciam por onde ela pisasse. Em Pafos, as Estações, filhas de Têmis, apressaram-se em vesti-la e adorná-la.

b. Há quem afirme que ela surgiu da espuma formada pelos testículos de Urano, quando Cronos os atirou ao mar. Conta-se também que Zeus a gerara com Dione, filha de Oceano e Tétis, a ninfa do mar, ou do Céu com a Terra. Mas todos concordam que ela sustém o ar, acompanhada por pombas e pardais.1

1. Afrodite (“nascida da espuma”) é a mesma deusa com amplos poderes que surgiu do Caos e dançou sobre o mar, tendo sido venerada na Síria e na Palestina como Ishtar ou Ashtaroth (vide I. 1). Seu mais famoso centro de adoração era Pafos, onde a imagem anicônica original da deusa é ainda visível por entre as ruínas do grandioso templo romano. Lá, em toda primavera, suas sacerdotisas banhavam-se no mar e retornavam renovadas.

2. Ela é chamada de filha de Dione, porque Dione era a deusa do carvalho, onde a pomba apaixonada fazia seu ninho (vide 51. a). Zeus alegou ser pai de Afrodite após apoderar-se do Oráculo de Dione em Dodona, portanto Dione tornou-se sua mãe. “Tétis” e “Thetis” são nomes da deusa como Criadora (formados, assim como “Têmis” e “Teseu”, de tithenai, “dispor” ou “ordenar”) e como deusa do mar, desde o momento em que começou a haver vida no mar (vide 2. a). Pombas e pardais eram famosos pela lascívia. Os frutos do mar ainda são considerados, por todo o Mediterrâneo, afrodisíacos.

3. Citera foi um importante centro do comércio cretense com o Peloponeso e deve ter sido por ali que a adoração a Afrodite entrou na Grécia. A deusa cretense tinha estreitos laços com o mar. Conchas cobriam o chão de seu palácio-santuário em Cnossos. Ela é representada em cima de uma pedra preciosa da caverna Ideana, soprando uma concha de tritão, com uma anêmona-do-mar ao lado de seu altar. O ouriço-do-mar e a siba (vide 81. 1) eram consagrados a ela. Uma concha de tritão foi encontrada em seu antigo santuário de Festo, e muitas outras mais, nas tumbas minoicas tardias, algumas delas sendo réplicas de terracota.