A alegoria da caverna
O livro VII da República inicia-se com um dos textos mais célebres de Platão: a alegoria da caverna. Sócrates pede a Glauco que imagine homens presos numa caverna e de costas para a entrada de onde vem a luz; por trás brilha, ao longe, uma lareira acesa num ponto alto; entre esse lume e os prisioneiros existe uma estrada alta e ao longo dessa estrada corre um murinho. Imaginemos agora que homens vão andando ao longo dessa estrada, levando objetos de todas as formas, assim como figuras de homens e animais que ultrapassam a altura do muro, uns falam, os outros seguem calados. Os prisioneiros da caverna, podendo apenas ver as sombras que se projetam no fundo da sua prisão, tomam-nas pela realidade e atribuem-lhes palavras que ouvem pronunciar. Esses prisioneiros são a nossa imagem: a prisão é o nosso mundo visível, as verdadeiras realidades constituem o mundo inteligível e, no extremo desse mundo inteligível, está a ideia do Bem que só dificilmente se apreende mas que está na origem de toda a luz. Para passar desse mundo visível para esse mundo inteligível, a nossa alma tem de operar um movimento de conversão e de regresso ao seu princípio. Mas a coisa é difícil, pois os nossos olhos estão habituados à penumbra da nossa prisão e a passagem da escuridão para a luz cega-nos; por isso, se se libertar esses prisioneiros, a maioria tentará voltar para o fundo da sua prisão e amaldiçoará aqueles que os quiseram libertar.
Se a alegoria é clara, levanta no entanto muitas dificuldades, que nascem, no fundo, de más interpretações. O contra-senso mais comum é o que leva a crer que Platão pensa segundo um dualismo no qual se deve distinguir por um lado um mundo das ideias e por outro um mundo sensível; assim, Aristóteles censurou várias vezes Platão por ter «separado as ideias». Dir-se-á então que a realidade inteligível apenas serve para duplicar inutilmente a realidade sensível e que estamos na presença de duas realidades sem podermos compreender como se opera a passagem de uma à outra.
Importa ver que esses dois mundos estão ao mesmo tempo separados e unidos. Como diz muito bem J. Lagneau: «O mundo inteligível não é uma espécie de reprodução ou de exemplar, em sentido próprio, do mundo sensível, mas antes esse mundo visto pelo espírito através de si próprio, ou seja, iluminado pela moral, tomando um sentido e uma realidade superior graças à relação que possui com o Bem, concebido, desejado e posicionado como o único ser digno desse nome, independente, fundamentado em si.»1 Joseph Moreau diz do platonismo que «pode ser visto como um realismo; o que não exclui que possa ser visto ao mesmo tempo como um idealismo»2. Por aqui se pode entender que o realismo de Platão nada tem que ver com o realismo ingênuo que leva ao subjetivismo e ao mobilismo empíricos, para os quais tudo é verdadeiro e nada finalmente é verdadeiro; o realismo de Platão é um realismo do inteligível que ergue a ideia em realidade, e nisto distingue-se do idealismo que leva a realidade à ideia. Se podemos falar de um realismo platônico, é na medida em que os objetos sensíveis não são realidades mas aparências, semelhanças de ideias. Existe ao mesmo tempo em Platão um realismo ontológico, porque «Deus é a medida de todas as coisas», e um idealismo gnoseológico, porque é o homem quem tenta conhecer e que é necessário que este se liberte primeiro da sua realidade. Deste modo, para Platão, a realidade não é um dado adquirido: um caminho longo e difícil deve levar-nos até ela.
Platão colocou, depois de Parmênides e numa perspectiva muito diferente, o problema das relações entre o ser e o conhecer: se o ser é posicionado, como irá ele deixar-se penetrar pelo conhecimento que eu possa ter dele? Se partir do «eu penso», poderei dizer que não existe qualquer ser independente de mim com o qual o meu pensamento se relacione? Eis o grande problema que coloca Platão e cuja gênese tentaremos reproduzir.
Les écrits de Jules Lagneau (Paris, 1924), p. 152. ↩
J. Moreau, Réalisme et idéalisme chez Platon (Paris, 1951), p. 3. ↩