Compreender o mundo e todo fenômeno como linguagem requer pensar que os entes, sendo e devindo, dizem de si mesmos ao mostrarem o seu comportamento. Essa linguagem, porém, ao mostrar-se e exibir-se, simplesmente sendo, é justamente aquilo que não apenas pode ser ouvido como não tem como não ser ouvido, isto é, não tem como deixar de ser sentido de alguma forma. Consequentemente, do mesmo modo que a linguagem aqui não pode ser compreendida exclusivamente como expressão verbal, pois não se limita a ela, o ouvir também excede a mera audição sonora. Podemos considerar que, em Heráclito, ouvimos com todos os nossos poros, com todos os nossos sentidos, pois é a partir do corpo e de sua estrutura estética que nos mantemos em contato sensível com a vida e o mundo. Com efeito, a hipótese de um homem desprovido de sentidos levar-nos-ia a um alguém que sequer participaria da existência. Daí que a sensibilidade, aisthesis, é o que possibilita e promove, para o homem, a sua participação na natureza e, por extensão, a sua interação nesse arranjo orquestrado que é o kosmos. Isto também indica que Heráclito, tal como predomina em toda a tradição filosófica grega, à exceção eventual de Platão, adota a ideia de que nenhum conhecimento inteligível seria possível se não nos fosse o conhecimento sensível primeiro. Compreende-se melhor, dessa forma, a sentença em que afirma que “do que há visão, audição, aprendizado, eis o que eu prefiro” [Fragmento 55]. É necessário ressaltar, entretanto, que essa preferência não significa uma aptidão particular, uma idiossincrasia qualquer. ‘Preferir’, em grego protimeo, significa o que se toma primeiro, o que se colhe imediatamente em detrimento de todo e qualquer mediato. “Preferir” não remete neste caso a uma escolha voluntária e pensada, uma escolha da ordem do querer humano; trata-se antes de uma escolha irrecusável da natureza. É o corpo que colhe, primeira e inevitavelmente pelos sentidos, o que a physis e o seu lógos lhe oferecem. O aprendizado é uma função dessa apreensão sensível, forma primeira de conhecimento, que só mediatamente se converte em conhecimento inteligível a partir que assimile e interprete o que foi colhido pelos sentidos. Apreender para aprender, eis a relação determinada pela própria physis. O corpo colhe, a interpretação escolhe. Há aqui portanto dois momentos que devem ser observados: (A) o “ouvir” é inevitável, universal e involuntário, dando-se esteticamente; (B) o modo como se ouve, porém, é particular, porque consiste numa construção interpretativa do homem, compondo-se inteligivelmente. Quer isto dizer que se o ouvir, assim como o pensar, são comuns a todos os homens e mesmo inelutáveis, na medida em que não temos a opção de escolher não-ouvir ou não-pensar, o conteúdo desse ouvir e desse pensar, em contrapartida, é vário e particular, pelo que se estabelecem duas instâncias ou dimensões: em palavras heraclíticas, (A) o comum (xynos) e (B) o particular (idios). Essas duas dimensões, para o homem, jamais se excluem, configuram permanentemente a tensão entre o que ele colhe com os sentidos e o que escolhe com o pensamento, a tensão entre a linguagem universal e comum da physis, o logos, e a linguagem particular e contingente do homem, o logos humano, uma linguagem própria concêntrica à própria linguagem. Essa relação de tensão entre os logoi da physis e do homem é referida fartamente pelos fragmentos e, por ora, destaco apenas um deles como exemplar dessa relação: “embora sendo o logos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento particular” [Fragmento 2].
[Alexandre da Silva Costa, “Da relação entre lógos e daímon em Heráclito: a escuta como definidora do homem”, in Russumanno Ricciardi, Rubens, Edson Zapronha, Quatro ensaios sobre música e filosofia. Ribeirão Preto, SP : Editora Coruja, 2013]