Apologia 28a-31c: Missão divina

Em realidade, cidadãos atenienses, para demonstrar que não sou réu, segundo a acusação de Meleto, não me parece ser necessária longa defesa, mas isso basta. Aquilo, pois, que eu dizia no princípio, que há muito ódio contra mim, e muito acumulado, bem sabeis que é verdade. E isso é o que me vai perder, se eu me perder … e não Meleto, ou Anito, mas, a calúnia e a insídia do povo: pela mesma razão se perderam muitos outros homens virtuosos, e outros ainda, creio, serão perdidos; não há perigo que a série se feche comigo. Mas talvez pudesse alguém dizer: Não te envergonhas, Sócrates, de te aplicardes a tais ocupações, pelas quais agora está arriscado a morrer? A isso, porei justo raciocínio, e é o seguinte: não estás falando bem, meu caro, se acreditas que um homem, de qualquer utilidade, por menor que seja, deve fazer caso dos riscos de viver ou morrer, e, ao contrário, só deve considerar uma coisa: quando fizer o que quer que seja, deve considerar se faz coisa justa ou injusta, se está agindo como homem virtuoso ou desonesto. Porquanto, segundo a tua opinião, seriam desprezíveis todos aqueles semideuses que morreram em Troia. E, com eles, o filho de Tétis, o qual, para não sobreviver à vergonha, desprezou de tal modo o perigo que, desejoso de matar Heitor, não deu ouvido à predição de sua mãe, que era uma deusa, e a qual lhe deve ter dito mais ou menos isto: – Filho, se vingares a morte de teu amigo Pátroclo e matares Heitor, tu mesmo morrerás, porque, imediatamente depois de Heitor, o teu destino estará terminado. – Ouviu tais palavras, não fez nenhum caso da morte e dos perigos, e, temendo muito mais o viver ignóbil e não vingar os amigos, disse: Morra eu imediatamente depois de ter punido o culpado, para que não permaneça aqui como objeto de riso, junto das minhas naus recurvas inútil fardo da terra. Crês que tenha feito caso dos perigos e da morte? Porque em verdade assim é, cidadãos atenienses: onde quer que alguém tenha colocado, reputando o melhor posto, ou se for ali colocado pelo comandante, tem necessidade, a meu ver, de ir firme ao encontro dos perigos, sem se importar com a morte ou com coisa alguma, a não ser com as torpezas.

Gravíssimo erro deveria considerar, cidadãos atenienses, quando os comandantes, por vós eleitos para me dirigirem, me assinalaram um posto em Potideia, em Anfípolo, em Délio, não ter ficado eu onde me colocaram como qualquer outro e correndo perigo de morte. Quando, pois, o deus me ordenava, como penso e estou convencido, que eu devia viver filosofando e examinando a mim mesmo e aos outros, então eu, se temendo a morte ou qualquer outra coisa, tivesse abandonado o meu posto, isso seria deveram intolerável. Nesse caso, com razão, alguém poderia conduzir-me ao tribunal, e acusar-me de não acreditar na existência dos deuses, desobedecendo ao oráculo, e temendo a morte, e reputando-me sábio sem o ser.

Pois que, ó cidadãos, o temer a morte não é outra coisa que parecer ter sabedoria, não tendo. É de fato parecer saber o que não se sabe. Ninguém sabe, na verdade, se por acaso a morte não é o maior de todos os bens para o homem, e entretanto todos a temem, como se soubessem, com certeza, que é o maior dos males. E o que é senão ignorância, de todas a mais reprovável, acreditar saber aquilo que não se sabe? Eu, por mim, ó cidadãos, talvez nisso seja diferente da maior parte dos homens, eu diria isto: não sabendo bastante das coisas do Hades, delas não fugirei. Mas fazer injustiça, desobedecer a quem é melhor e sabe mais do que nós, seja deus, seja homem. isso é que é mal e vergonha. Não temerei nem fugirei das coisas que não sei se, por acaso, são boas ou más. Anito disse que, ou não se devia, desde o princípio, trazer-me aqui, ou, uma vez que me trouxeram não é possível deixarem de me condenar à morte, afirmando que, se eu me salvasse, imediatamente os vossos filhos, seguindo os ensinamentos de Sócrates, estariam de fato corrompidos. Mas, se me absolvêsseis, não cedendo a Anito, se me dissésseis: Sócrates, agora não damos crédito a Anito, mas te absolveremos, contando que não te ocupes mais dessas tais pesquisas e de filosofar, porque, se fores apanhado ainda a fazer isso, morrerás; se, pois, me absolvêsseis sob tal condição, eu vos diria:

– Cidadãos atenienses, eu vos respeito e vos amo, mas obedecerei aos deuses em vez de obedecer a vós, e enquanto eu respirar e estiver na posse de minhas faculdades, não deixarei de filosofar e de vos exortar ou de instruir cada um, quem quer que seja que vier à minha presença, dizendo-lhe, como é meu costume: – Ótimo homem, tu que és cidadão de Atenas, da cidade maior e mais famosa pelo saber e pelo poder, não te envergonhas de fazer caso das riquezas, para guardares quanto mais puderes e da glória e das honrarias, e, depois, não fazer caso e nada te importares de sabedoria, da verdade e da alma, para tê-la cada vez melhor?

E, se algum de vós protestar e prometer cuidar, não o deixarei já, nem irei embora, mas o interrogarei e o examinarei e o convencerei, e, em qualquer momento que pareça que não possui virtude, convencido de que a possuo, o reprovarei, porque faz pouquíssimo caso das coisas de grandíssima importância e grande caso das parvoíces. E isso o farei com quem quer que seja que me apareça, seja jovem ou velho, forasteiro ou cidadão, tanto mais com os cidadãos quanto mais me sejam vizinhos por nascimento.

Isso justamente é o que me manda o deus, e vós o sabeis, e creio que nenhum bem maior tendes na cidade, maior que este meu serviço do deus.

Por toda parte eu vou persuadindo a todos, jovens e velhos, a não se preocuparem exclusivamente, e nem tão ardentemente, com o corpo e com as riquezas, como devem preocupar-se com a alma, para que ela seja quanto possível melhor, e vou dizendo que a virtude não nasce da riqueza, mas da virtude vem, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como privados.

Se, falando assim, eu corrompo os jovens, tais raciocínios são prejudiciais; mas se alguém disser que digo outras coisas que não essas, não diz a verdade. Por isso vos direi, cidadãos atenienses, que secundado Anito ou não, absolvendo-me ou não, não farei outra coisa, nem que tenha de morrer muitas vezes.

Não façais rumor, cidadãos atenienses, mas perseverai no que vos estou dizendo, isto é, não vocifereis pelas coisas que vos digo, mas ouvi-me; pois escutando-me, penso que tirareis proveito.

Aqui estou para vos dizer algumas outras coisas, e talvez, por isso, levantareis a voz, mas não o deveis fazer. Sabei-o bem: se me condenais a morrer, a mim que sou tal como eu digo, não causareis maior dano a mim que vós mesmos. E, de fato, nem Meleto, nem Anito me poderiam fazer mal em coisa em alguma: isso jamais seria possível, pois que não pode acontecer que um homem melhor receba dano de um pior. É possível que me mandem matar, ou me exilem, ou me tolham os direitos civis; mas provavelmente, eles ou quaisquer outros reputam tais coisas como grandes males, ao passo que eu não considero assim, e, ao contrário considero muito maior mal fazer o que agora eles estão fazendo, procurando matar injustamente um homem.

Ora, pois, cidadãos atenienses, estou bem longe de me defender por amor a mim mesmo, como alguém poderia supor, mas por amor a vós, para que, condenando-me, não tenhais de cometer o erro de repelir o dom de mim que vos fez o deus. Pois que, se me mandares matar, não encontrareis facilmente outro igual, que (pode parecer ridículo dizê-lo) tenha sido adaptado pelo deus à cidade, do mesmo modo com a um cavalo grande e de pura raça, mas um pouco lerdo pela sua gordura, é aplicada a necessária esporada para sacudi-lo. Assim justamente me parece que o deus me aplicou à cidade, de maneira que, despertando cada um de vós e persuadindo-vos e desaprovando-vos, não deixo de vos esporar os flancos, por toda a parte, durante todo o dia.

E outro parecido, não tereis tão facilmente, cidadãos. Mas, se me ouvísseis me pouparíeis. É possível que vós irritados como aqueles que são despertados quando no melhor do sono, repelindo-me para condescender com Anito, levianamente me condeneis à morte, para dormirdes o resto da vida, se, entretanto, o deus, pensando em vós, não vos mandar algum outro.

Que eu seja um homem cuja qualidade é a de ser um dom feito pelo deus à cidade podereis deduzir do seguinte: não é, na verdade, do homem, eu ter descuidado das minhas coisas, resignando-me por tantos anos a me descuidar dos negócios domésticos para acudir sempre aos vossos, aproximando-me sempre de cada um de vós em particular como um pai ou irmão mais velho, persuadindo-vos a vos preocupardes com a virtude? Se, em verdade, disto eu obtivesse qualquer coisa e recebesse compensação de tais advertências, teria uma razão. Mas agora vós mesmos vedes que os acusadores, tendo acusado a mim, com tanta imprudência, de tantas outras coisas, não foram capazes de apresentar uma testemunha de que eu tenha contratado ou pedido alguma recompensa.

Pois bem; apresento um testemunho suficiente do que digo: a minha pobreza.