Excertos de Hannah Arendt, “A Condição Humana”
Parece-nos óbvio que os gregos temiam esta desvalorização do mundo e seu inseparável antropocentrismo — a opinião «absurda» de que o homem é o mais alto de todos os seres vivos e de que tudo o mais está sujeito às exigências da vida humana (Aristóteles) — da mesma forma como viam com desprezo a pura vulgaridade de todo utilitarismo sistemático. O famoso argumento de Platão contra o dito de Protágoras, aparentemente axiomático, de que «o homem é a medida de todas as coisas de uso (chremata), da existência das que existem e da inexistência das que não existem»,1 talvez seja o melhor exemplo de que já se anteviam as consequências de considerar-se o homo faber como a mais alta possibilidade humana. (Evidentemente, Protágoras não disse que «o homem é a medida de todas as coisas», como nos fazem crer a tradição e as traduções consagradas.) O que importa é que Platão percebeu desde logo que, quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso, está-se correlacionando o mundo com o homem-usuário e fazedor de instrumentos, e não com o homem-orador, pensador ou o homem de ação. E como é da natureza do homem-usuário e fabricante de instrumentos ver em tudo um meio para um fim — ver em cada árvore determinado potencial de madeira —, isto fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de todas as coisas cuja existência dele depende, mas de literalmente tudo o que existe.
Na interpretação platônica, Protágoras se afigura, realmente, como o primeiro precursor de Kant; pois, se o homem é a medida de todas as coisas, então só o homem escapa à relação de meios e fins; só ele é um fim em si mesmo, capaz de usar tudo o mais como meios. Platão sabia perfeitamente que as possibilidades de produzir objetos de uso e de tratar todas as coisas da natureza como objetos de uso são tão ilimitadas quanto as necessidades e os talentos do ser humano. Se os critérios do homo faber passarem a governar o mundo depois de construído, como devem necessariamente presidir o nascimento desse mundo, então o homo faber, mais cedo ou mais tarde, servir-se-á de tudo e considerará tudo o que existe como simples meios à sua disposição. Julgará tudo como se todas as coisas pertencessem à categoria de chremata ou objetos de uso, de sorte que, para adotar o exemplo de Platão, o vento deixará de ser concebido como força natural, existente por si mesmo, para ser considerado exclusivamente do ponto de vista das necessidades humanas de calor e refrigério — e isto, naturalmente, significaria que o vento, como algo objetivamente dado, seria eliminado da experiência humana. Prevendo tais consequências, Platão — que no fim da vida lembra mais uma vez nas Leis o dito de Protágoras — responde com uma fórmula quase paradoxal: não o homem — que, em virtude de suas necessidades e astúcia quer usar tudo, e portanto termina por despojar todas as coisas de sua valia intrínseca — mas «o deus é a medida (até mesmo) dos simples objetos de uso».2
Theaetetus 152 e Cratylus 385E. Nestes casos, como em outras citações antigas do dito famoso, Protágoras é sempre citado nos seguintes termos: panton chrematon nietron estin anthropos (veja-se Diels, Fragmente der Vorsokratiker (4a. ed.; 1922), frag.B1). A palavra chremata não significa, de forma alguma, «todas as coisas», mas somente aquelas coisas que os homens usam, necessitam ou possuem. O suposto dito de Protágoras — «o homem é a medida de todas as coisas» — seria, em grego, anthropos metron panton, parafraseando, por exemplo, a frase de Heráclito: polentos pater panton («o conflito é o pai de todas as coisas»). ↩
Leis 716D cita textualmente o dito pitagórico, exceto que a palavra «homem» (anthropos) é substituída por «o deus» (ho theos). ↩