Será que se delibera acerca de todas as coisas e que tudo é (1112a18) objecto de deliberação ou há objectos acerca dos quais não há deliberação? Talvez deva ser dito que não é passível de deliberação aquilo sobre o qual um tolo ou um louco poderá deliberar. Passível de deliberação é, antes, aquilo sobre o qual delibera alguém razoável1.
Ninguém delibera sobre o que é eterno, como, por exemplo, sobre a ordenação do universo ou sobre o facto de a diagonal e o lado do quadrado serem incomensuráveis. Mas também não se delibera sobre as coisas que estão sempre num movimento regular, seja (25) por necessidade, seja por natureza ou como quer que seja, como é o caso, por exemplo, dos solistícios e do nascer do Sol. Nem sobre aquelas coisas que são de modo diferente em ocasiões diferentes, como as secas e as chuvadas. Nem sobre as coisas que acontecem por acaso, como a descoberta de um tesouro. Nem sobre tudo o que pode sobrevir ao Humano. Ninguém da Lacedemónia deliberará (30) sobre como poderá governar do melhor modo possível a Cítia. Nenhuma destas coisas poderá ser objecto de deliberação porque jamais poderá acontecer através da nossa intervenção. Nós deliberamos sobre aquelas coisas que nos dizem respeito e que dependem de nós, a saber sobre as acções que podem ser praticadas por nós. São estas as que restam para podermos deliberar. As causas (responsáveis pelos acontecimentos) parecem ser a natureza, a necessidade, o acaso, bem como o poder de compreensão e tudo o que acontece através do Humano. Cada um de nós delibera sobre as acções que podem ser praticadas por si. Também não há deliberação (1112b1) sobre as ciências rigorosas e autónomas, como sobre a ortografia (pois não entramos em desacordo sobre como se deve escrever correctamente). Contudo, deliberamos sobre todas aquelas matérias que acontecem através de nós e que não acontecem sempre do mesmo modo, como acerca das matérias concernentes à perícia da medicina e à perícia na obtenção de riqueza, e do mesmo modo (5) deliberamos sobre a perícia de pilotar navios, mais até do que a respeito da ginástica, porque esta tem um menor grau de rigor. E assim de modo semelhante ainda sobre outras perícias, e mais acerca das perícias do que acerca das ciências, uma vez que as primeiras nos suscitam mais dúvidas. O deliberar é a respeito das situações que ocorrem o mais das vezes, mas relativamente às quais é incerto qual será o seu resultado. Isto é, a respeito das situações em que há (10) indeterminação. Acolhemos, por isso, junto de nós conselheiros para as matérias de grande importância, desconfiando não nos bastarmos a nós próprios e sermos até incapazes de sequer as diagnosticarmos.
Deliberamos, assim, não sobre os fins, mas sobre os meios de os atingirmos. Ou seja, nem o médico delibera sobre se quer curar, nem o orador sobre se quer persuadir, nem o político sobre se quer fazer uma boa legislação, nem nenhum dos outros peritos deliberará (15) sobre quais são os fins. Antes, propondo-se um fim, examinam o modo como e através de que meios será possível atingi-lo. E, se houver opinião formada sobre muitos meios para se atingir o fim, procuram ver aquele através do qual lá se chega mais facilmente e da melhor maneira possível; se, contudo, o fim for realizado através de um só meio, examinam como poderá ser atingido através desse único meio. Procuram ver, portanto, em ambos os casos, de que modo chegam até ao princípio, o qual, na ordem da descoberta (20), é o último a ser atingido. O que está na situação de deliberar parece investigar e analisar do modo referido como se estivesse a investigar e a analisar um diagrama (parece que nem toda a investigação é uma deliberação, como no caso das matemáticas, mas toda a deliberação é uma investigação), e o passo final na ordem da análise é o primeiro na ordem da execução. E, se encontrarem (25) uma dificuldade impossibilitadora, abandonam esse fim que tinham em vista, por exemplo, se precisarem de dinheiro para o realizar e não o conseguirem obter. Mas se, por outro lado, lhes parecer que é possível, empreendem a acção e começam logo a agir. Possíveis são aquelas coisas que podem ser feitas por nós e através de nós; as coisas que são feitas pelos nossos amigos são de algum modo feitas por nós, porque o princípio da acção está em nós. (Ética a Nicômaco, Livro III Capítulo III. Tr. António Caeiro