Excerto do Livro III, capítulo 1, de: ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Tr. António de Castro Caeiro. Lisboa: Quetzal, 2015, p. 65-66.
Sendo a excelência constituída a respeito das afecções e das acções, havendo louvores e repreensões apenas relativamente a acções voluntárias — porque relativamente a acções involuntárias, às vezes há perdão, outras vezes compaixão —, é necessário, talvez, para quem pretende examinar os fenómenos que concernem à excelência, definir-se a acção voluntária e a acção involuntária, definição de resto também útil aos legisladores não só para a atribuição de honras como também para a aplicação de castigos.
Involuntárias são, assim, aquelas acções que se geram sob coacção ou por ignorância. Um acto perpetrado sob coacção é aquele cujo princípio (motivador) lhe é extrínseco. Um princípio desta natureza é tal que o agente, na verdade, passivo, não contribui em nada para ele. Como se ventos ou homens poderosos o levassem para qualquer sítio. Mas determinar se as acções praticadas por medo de males maiores ou em vista de algo glorioso — por exemplo, se alguém se vê obrigado a praticar um acto vergonhoso por um tirano que ameaça de morte os seus pais e filhos, mantidos reféns, e ao mesmo tempo promete salvá-los, se a ordem for executada — são acções involuntárias ou voluntárias envolve controvérsia. Uma situação deste género acontece, por exemplo, quando no meio de tempestades se tem de deitar a carga borda fora. Porque ninguém a deitaria ao mar assim sem mais, voluntariamente, mas apenas com o objectivo de se salvar a si e aos restantes. Acções deste género são mistas, embora, de facto, pareçam mais ser voluntárias. Na verdade, são escolhidas no momento em que são praticadas e o fim da acção é determinado de acordo com a ocasião e a oportunidade do momento. As características do ser «voluntário» e «involuntário» só podem ser determinadas em função do tempo em que a acção é executada. Ora só quem se encontra em determinadas circunstâncias é que age, de facto, voluntariamente. Isto é, quando tem em si próprio o princípio (motivador) da acção, accionando assim os elementos instrumentais da acção. Quando o princípio motivador se encontra no próprio agente, é dele que depende o serem levadas à prática ou não. Acções deste género são, pois, voluntárias, mesmo que resultem da força das circunstâncias. Ainda assim, podem, por outro lado, ser consideradas involuntárias, porque, noutras circunstâncias, ninguém teria decidido levá-las à prática.
(…) Talvez não seja mau definir, então, quais são as circunstâncias que têm de ocorrer para a realização de uma acção e que não podem ser ignoradas. Defina-se, então, qual a sua forma e o seu número. (Não pode assim ignorar-se:) 1) quem age e 2) o que faz, 3) a respeito do quê ou de quem é a acção e qual a situação peculiar em que se encontra o agente; por vezes também 4) aquilo com o qual se age, por exemplo, o instrumento com que se executa a acção, e o 5) fim em vista do qual se age, por exemplo, em vista da salvação, e 6) de que maneira se age, por exemplo, calma ou veementemente.
Ora que ninguém poderá ignorar todas estes requisitos ao mesmo tempo, a não ser que esteja demente, parece evidente. Pelo menos, é evidente que não pode ignorar quem é o agente. Na verdade, como é que alguém se pode ignorar a si próprio? De facto, alguém pode agir sem saber o que faz, como os que dizem, «deixar escapar (algo) enquanto conversavam», ou como quando dizem «que não sabiam que eram segredos», como refere Ésquilo a respeito dos mistérios, ou, como quando querem mostrar como algo funciona e accionam, sem querer, o seu mecanismo, como no caso da catapulta. Alguém pode confundir o seu próprio filho com um inimigo, como Mérope; ou confundir uma lança pontiaguda com uma romba, ou uma pedra com uma pedra-pomes; ou ainda quando, fazendo alguém beber um fármaco para o salvar, o mata; ou querendo agarrar as mãos a alguém (como os lutadores de luta livre), e desferem um golpe. Ora pode haver desconhecimento de todas estas circunstâncias da acção, e quem ignora alguma delas parece agir involuntariamente, e por maioria de razão, age involuntariamente, quando ignora as circunstâncias mais decisivas. O que parece ser mais importante nas circunstâncias da acção é o fim em vista do qual ela é levada a cabo. Dizendo-se, então, que uma acção praticada nestas circunstâncias é involuntária e depende de uma ignorância deste género, deve acrescentar-se ainda que essa acção é dolorosa e provoca arrependimento.
Sendo a acção involuntária feita sob coacção e por ignorância, a acção voluntária parece ser aquela cujo princípio reside no agente que sabe das circunstâncias concretas e particulares nas quais se processa a acção. Talvez, de facto, não se diga de modo correcto que as acções involuntárias sejam provocadas pela ira ou pelo desejo, porque nenhum dos outros seres vivos que não os Humanos age voluntariamente, nem sequer as crianças. Posto isto, poder-se-á perguntar se não haverá acções voluntárias entre as que são motivadas pelo desejo e pela ira, ou será que voluntárias serão apenas as boas acções, e involuntárias as más? Não será esta distinção ridícula, havendo um único agente responsável por elas? Além do mais é absurdo dizer-se que são acções involuntárias as acções intencionais em direcção àqueles objectivos que se pretendem atingir. Devemos irritar-nos em determinadas situações e desejar algumas coisas, como a saúde e a aprendizagem. Também parece que as acções involuntárias são dolorosas, mas as que são feitas por desejo dão gosto. Além do mais, em que é que diferem as acções involuntárias resultantes de erro de cálculo das que são provocadas pela ira? Ambas devem ser evitadas; e, contudo, as afecções irracionais não parecem ser menos pertencentes à natureza humana. Assim, fazem, também, parte do Humano as acções provocadas pela ira e pelo desejo. É absurdo, portanto, supor que são involuntárias.