Aritmologia pitagórica

Tendo os números, figuras e volumes uma individualidade, ou mais precisamente uma personalidade, em função do lugar que ocupam no concerto do mundo, foram, por parte dos Pitagóricos, objecto de especulações obscuras ou brumosas, nas quais muitas vezes se quis ver apenas superstições sem interesse. Assim nasceu uma aritmologia que poderia considerar-se estar para a aritmética como a astrologia para a astronomia. Por mais descabeladas que possam ser tais especulações, convém não esquecer o que as anima, ou seja, uma concepção do mundo, mais precisamente da quantidade, diferente da nossa. Os Pitagóricos não consumaram o divórcio entre a quantidade e a qualidade; para eles, há um elemento espiritual dos números que os toma verdadeiros existentes, não redutíveis a simples medidas. Apenas podemos apresentar aqui alguns exemplos de semelhantes especulações1.

Os números pares eram considerados femininos e os ímpares masculinos: «se dividirmos um e outro em unidades, o par mostrará um lugar vazio no meio, lugar ,que o não-par tem sempre ocupado por uma de suas partes, e por essa razão [os Pitagóricos] opinam que o par se assemelha mais à fêmea e o não-par ao macho»2. O número 3 é considerado perfeito «porque é o primeiro número que tem um começo, um meio e um fim; é simultaneamente linha e superfície; é, com efeito, um número triangular equilateral, cujos lados valem duas unidades. Enfim, o número 3 é o primeiro vínculo e a potência do sólido, porque a ideia de sólido assenta nas três dimensões»3. Cinco é o primeiro número que resulta, por adição, do primeiro número feminino e do primeiro número masculino. Seis é o produto do primeiro número masculino e do primeiro número feminino, razão por que se denomina «casamento». «Um outro número da década, o número 7, é dotado de uma propriedade notável: é o único que não engendra nenhum número compreendido na década nem é engendrado por qualquer deles, o que levou os Pitagóricos a dar-lhe o nome de Minerva, porque esta deusa não foi engendrada e nunca foi mãe, não provém de nenhuma união e não se uniu a ninguém […] Sete é o único número que, multiplicado por um outro, não engendra nenhum dos que pertencem à década e não é produto da multiplicação de nenhum número»4. Tião de Esmima precisa que é em sete semanas que o feto pode chegar à perfeição, no sétimo mês que se toma viável, que é na idade de sete anos que as crianças perdem os dentes do leite, os sinais da puberdade aparecem no segundo período de sete anos e a barba começa a crescer no terceiro período de sete anos. De um equinócio a outro contam-se sete meses; a cabeça tem sete aberturas, o corpo possui sete vísceras. O número 8 compõe-se da unidade e do septenário. O número 9 é o primeiro quadrado entre os ímpares.

Mas é de modo particular a década, a tetraktys, que parece dotada de poderes extraordinários. Jâmblico conserva-nos a fórmula do juramento pitagórico: «Não, juro-o por aquele que transmitiu à nossa alma a tetraktys, na qual se encontra a raiz e a fonte da eterna natureza.» A ela igualmente se dirigia uma oração: «Abençoa-nos, número divino, tu que geraste os deuses e os homens! Ó santa Tetraktys, tu que conténs a raiz e o fluxo eterno da criação! Porque o número divino começa pela unidade pura e profunda e atinge em seguida o quatro sagrado; depois engendra a mãe de tudo, que tudo une, o primogênito, aquele que nunca se afasta, jamais se fatiga, o Dez sagrado, que detém a chave de todas as coisas.» Tião de Esmirna diz-nos que a tetraktys completa a série dos números, compreende em si mesma a natureza do par e do ímpar, do que está em movimento e do imutável, do bem e do mal5. A década possui, além disso, a propriedade de encerrar em si um número igual de números primos e de números compostos; pode, enfim, representar-se por esta figura:

10 = 1 + 2 + 3 + 4 [img_assist|nid=2860|title=Tetraktys|desc=|link=none|align=none|width=145|height=137]

que mostra com clareza que 10= 1+2 + 3 +4. Acrescente-se ainda que «entre os números compreendidos na década, uns engendram e são engendrados, por exemplo 4 multiplicado por 2 engendra 8 e é engendrado por 2; outros são engendrados, mas não engendram, como 6, que é produto de 2 por 3, mas não engendra nenhum número da década; outros engendram, mas não são engendrados, como 3 e 5, que não são engendrados por nenhuma combinação de números, mas engendram, a saber: 3 produz 9 e, multiplicado por 2, produz 6, e 5 multiplicado por 2 produz 10»6. Assim, a Década é um número verdadeiramente divino, segundo Nicômaco de Gerasa:

«Como o Todo compreendia uma multidão ilimitada, era preciso uma Ordem […], ora, na Década preexistia um equilíbrio natural entre o conjunto e os elementos […]. Por isso o Deus, que por meio da razão tudo dispõe com arte, se serviu da Década como de um cânon para o todo […], e por isso as coisas, do céu à terra, têm as relações de concordância dos conjuntos e das partes nela baseadas e por ela ordenadas.»

As especulações pitagóricas reencontram-se igualmente a respeito das figuras geométricas. Citaremos, como exemplo, o triângulo que os Pitagóricos qualificavam de «sagrado» e cujas propriedades eram perfeitamente conhecidas dos Egípcios. Trata-se do triângulo que tem por lados 3 e 4 e por hipotenusa 5, o único cujos lados são formados de números seguidos; tem sobretudo a preciosa propriedade de ser um triângulo retângulo porque

3² + 4² = 5²

Tal particularidade permite ao arquitecto, munido de uma corda com 12 nós equidistantes, traçar facilmente no solo um ângulo recto; sendo retângulo, este triângulo é naturalmente inscritível num semicírculo. Além disso, se os lados do triângulo são 3,4,5, a superfície é igual a 6. Entre as outras figuras a que os Pitagórico? atribuíam propriedades goemétrico-mágicas, importa citar o pentágono, o pentagrama ou o pentalfa.

Terminemos, falando dos poliedros pitagóricos que desempenham papel essencial na história das ideias em geral e da arquitetura em particular. Os poliedros regulares são formados de polígonos regulares idênticos para um mesmo poliedro; estes poliedros são inscritíveis numa esfera e são apenas cinco: o tetraedro, o octaedro, o cubo, o icosaedro e o dodecaedro. Podem transformar-se uns nos outros, mas não indiferentemente. Cada um desses cinco corpos era atribuído a um elemento: o tetraedro ao fogo, o octaedro ao ar, o cubo à terra, o icosaedro à água, o dodecaedro ao quinto elemento que abraça todos os outros. Esta tradição pitagórica foi retomada por Platão no Timeu. Desempenhou um papel essencial nos traçados das catedrais e na construção das lanternas venezianas. Reencontramos estes poliedros na obra de Luca Pacioli De divina proportione, que data de 1509, desenhados por Vinci.

Portanto, o Pitagorismo mais não faz do que raciocinar acerca dos númeroi e também sonhar sobre eles. Seria essencial pesquisar o sentido latente de cada um desses sonhos que alimentaram uma simbólica que fazia de cada um portador de uma mensagem.


  1. Sobre o problema consultar as obras de CHAIGNET e de DELATTE, bem como Matila GHYKA, Philosophie et mystique du nombre, Paris, 1952, e E. BINDEL, Les éléments spirituels des nombres, trad. de Maze, Paris, 1960. Tião de Esmirna continuará a ser a principal fonte, bem como Jâmblico

  2. PLUTARCO, Questions romaines, CII, 228 c, trad. Amyot. 

  3. TIÃO DE ESMIRNA, Exposition des connaissances mathématiques utiles pour la connaissance de Platon, trad. J. Dupuis, Paris, 1892; reed. Brux. 1966, p. 165. 

  4. Loc. cit., p. 169. 

  5. TIÃO de ESMIRNA, loc. cit., p. 175. 

  6. TIÃO de ESMIRNA, loc. cit., p. 169; sobre a tetraktys, cf. Delatte, loc. cit., 249.