arte

Comecemos pelo apendicular: que arte é representação simbólica e que a matéria [76] da representação é mítica (no texto: mitologia). O mesmo se diz hoje, quando se afirma que a arte é sempre «engajada» («ideologias» são os mais recentes produtos do mítico, criador de mitos). O que não se vê imediatamente, porque não se diz o em que a arte se engajou. A arte está engajada numa ou noutra ideologia. Se não, não vemos em que se tenha podido engajar. Lícito nos seria jogar aqui um jogo tão sério como todos os jogos. Poderíamos dizer que a arte se «engaja» na tripulação de uma nave em que, só alguns, bem poucos, sabem de qual a sua rota e do seu destino; sabem-no os deuses expulsos do Mundo? O impulso mítico continua criando, se não mitos, ideologias. Ideologias são mitos de quem já não quer saber de mitos. Tentamos dizer por que a matéria da arte é mitologia, mas ainda não por que é simbólica. Isso porém se desvelará, sem que necessário seja retirar um véu, ao penetrarmos no sentido a que ligamos a proposição em causa. [EudoroMito:76-77]


82. A obra de arte pertence a superlatividade do simbólico e, como tal, ela só vive na própria ambiência dos símbolos que vivem de vida própria. Essa ambiência é a da trans-objetividade. Na trans-objetividade não há «coisas», nem as que são belas, porque «coisas» só existem na objetividade. Na trans-objetividade [169] só há símbolos e, de cada um destes, uma obra de arte é superlativo absoluto. Platão foi revoltantemente injusto para com os poetas, sobretudo na República: declarou que estes imitavam coisas que, por sua vez, já imitavam ideias. Obras de poetas eram sombras de sombras das únicas realidades dignas desse apelativo. Se o mau humor do filósofo que reivindicava, agora, para a filosofia o que, outrora, os poetas reivindicavam para a sua poesia, e com bem maior sucesso: a capacidade de incorporar tudo o que pertence à educação e ao descobrimento da verdade, ter-lhe-ia sido fácil colocar os poetas, os artistas de qualquer arte, no mesmo patamar da ascensão até o ponto de onde ele cria ver o que já não podia dizer — a Ideia do Bem, ou seja, da Perfeição. Vamos agora tentar dizer o que Platão podia ter dito: ideias relacionam-se com coisas, como origens se relacionam com coisas originadas. Assim, Platão poderia asseverar que a poesia (arte) era imitação das «origens das coisas» e não das «coisas originadas». Talvez fosse isto o que Aristóteles tentou dizer na sua Poética. Deste modo, fica aberto o caminho donde se avista a arte como simbólica. Se o símbolo é «coisa» acrescida do seu «ser-origem», sem dúvida que a arte é simbólica, pois consegue mostrar-nos, na reprodução de cada coisa originada, no mundo ou no homem, a origem da mesma coisa — o que, decerto, não acontece com as coisas só «coisas», e, muito menos, com suas imitações, por muito belas que sejam. Bem sabemos que Platão não expulsara todos os poetas da sua «república de filósofos». Restavam os «possessos» da loucura poética, a que, mais tarde, se referiria no Fedro. Deixemos cair as restrições que ele faz, por melhor exemplo, à poesia épica e trágica, Arte não é obra de indisponíveis, mas dos que, à maneira dos religiosos, se dispuseram e estão dispostos à possessão por um deus. Por meio da arte, o deus começa a falar uma linguagem humana, em que o aceno dele está para se fazer mensagem do Outro. O símbolo arquetípico diz, de dentro de si mesmo, mas, talvez, ainda só para dentro de si mesmo, em linguagem de palavras, sons, cores e volumes, quem é o deus acenante do aceno, e neste dizer, o homem se esvazia do mesmo deus: nova disponibilidade para outra «possessão»; outro deus acenante se apossará dele. Os deuses, todos os deuses acenantes, por meio dessa linguagem, que é arte simbólica por superlação de todo o símbolo, desfilam agora diante de nós — mas na Lonjura e no Outrora — fazendo toda a casta de acenos, que ainda acenam para todas as «espécies» de polaridades «homem-mundo», mas agora nenhum é insignificante, por própria mudez. O reinar dos deuses já não está de todo oculto, o [170] reino se descerra e descortina em cada correlação específica entre o homem-alma, detido pela alma do deus, e o mundo-corpo, retido pelo corpo do mesmo deus. Todavia, a linguagem artística do mito está para revelar-se mais como silêncio insignificado do que por palavras significativas. [EudoroMito:169-171]


Parecia, por conseguinte, que ainda se pensava na possibilidade de existir «arte» no reino diabólico da objetividade. Mas arte que verdadeiramente o seja só provém da trans-objetividade, mesmo que intervenha na objetividade. Nesta, os homens não querem saber de arte que não seja «técnica». A arte surpreende os «objetivistas-positivistas», pelas suas reivindicações, ou pelas reivindicações dos artistas, quando estes pretendem que uma obra sua, ou uma obra de sua arte, seja mais do que uma «coisa». Pode também dar-se o caso de se lhe conceder que a obra de arte não é «coisa» banal. E, então, a natureza da sua não banalidade torna-se em disciplina estética, que visa ou, pelo menos, visava distinguir, pela «beleza», o que pertencia ou não pertencia à arte. Mas em qualquer estética «objetivista», dá-se sempre o mesmo que se dá em qualquer das numerosíssimas disciplinas em que se repartir o saber do Mundo como «coisa», como a «coisa» maior que existe, para subentender todas as «coisas» que existem, e que existem por objetivação do mesmo sujeito, do mesmo sujeito que, por vezes, o é tão pouco que quase se reduziria a objeto. [EudoroMito:169]