AS PAIXÕES E A ALMA

Assim se produzem as enfermidades que afetam o corpo. As que afetam a alma por intermédio do corpo, se passam da seguinte maneira. Diremos primeiro que a enfermidade da alma é a demência e que existem dela duas classes: a loucura e a ignorância. Por conseguinte, todo padecer que traz consigo uma destas duas coisas teremos que chamá-lo enfermidade, e temos que admitir que os prazeres e as aflições demasiado fortes são a pior enfermidade para a alma. Com efeito, quando o homem experimenta uma alegria excessiva ou está possuído pelos sentimentos contrários porque se acha dominado pela dor, se trata de apoderar-se de algo apressada ou inoportunamente ou de fugir de algo, nem a vista nem o ouvido funcionam como devem; cai num aceso de fúria e não pode fazer uso do razoamento para nada. E aquele em quem o germe é abundante e flui pela medula e chega a ser como uma árvore que produziu muitos frutos, experimenta em toda conjuntura prazeres e dores sem conta, tanto em seus desejos quanto em todas as coisas que se derivam deles, e está, assim, quase sempre enfurecido pelo excesso das dores e dos pesares e possui a alma enferma e desconcertada pela própria ação do corpo. Não obstante, não se diz dele que está enfermo e sim que é mau porque o consente. Na realidade, a incontinência erótica não é outra coisa que uma enfermidade da alma que origina em grande parte uma predisposição particular que se derrama pelo corpo: e o impregna através da substância leve dos ossos.

Quase tudo o que se atribui a intemperança das paixões e se reprova aos homens como obra de sua vontade, se os reprova injustamente, porque ninguém é mau porque o quer. O homem é mau por certa predisposição ao mal que existe em seu corpo, ou por uma predisposição viciosa. Ninguém pode dispor-se ao mal deliberadamente e todos os homens o aborrecem. Segundo isto, e pelo que se refere aos sofrimentos e às tristezas, também a alma. pela via do corpo, sofre extraordinariamente. Pois quando os humores ácidos e biliosos e os que procedem da pituitária salgada ou acre, depois de terem percorrido o corpo, não encontram respiro para fora e agitando-se dentro infundem seu .vapor e o mesclam às revoluções da alma, geram então as mais várias enfermidades da alma, ora maiores ora menores, ora menos numerosas ora mais, e chegando aos três departamentos da alma, segundo seja o objeto de ataque, produzem as mais variadas formas de tristeza ou de,mau humor, de temeridade ou de covardia, de esquecimento ou de preguiça mental. Quando, ademais, hâ%as cidades maus governos, formados por homens de constituição viciosa que falam em particular ou em público e aprenderam coisas de criança que de nada podem servir para a terapêutica das enfermidades, todos nós nos tornamos maus por esse caminho e por duas causas que atuam sem a intervenção da vontade. Porém destas duas coisas mais se deve acusar os pais do que os filhos, mais os mestres do que os discípulos. Não obstante, deve-se esforçar e fazer tudo o que se possa mediante a aplicação e os costumes, para fugir do mal e alcançar seu contrário. Mas isto constitui um assunto diferente.

A contrapartida do que antecedeu, a saber, o que se refere aos cuidados do corpo e da inteligência e os meios que se devem empregar para assegurá-los, é este o momento para propor a questão; sem dúvida é melhor falar do bem que do mal. Diremos, pois, que tudo o que é bom é formoso, e tudo o que é belo é proporcionado. Portanto, os seres, para que possam ser chamados bons, fazem supor que estão sujeitos a determinada proporções. Ora, compreendemos bem as coisas pequenas e proporcionadas porque estão ao nosso alcance; as grandes e mais importantes, pelo contrário, escapam a nossa consideração. Pelo que se refere à saúde e à enfermidade, às virtudes e aos vícios, nenhuma classe de proporções ou de desproporções é mais importante que a que existe entre a alma mesma e o corpo. E precisamente destas relações não nos damos conta, nem compreendemos que quando uma forma pequena e débil possui uma alma poderosa e grande em tudo, e quando estes dois elementos se unem no sentido contrário, o ser vivo não pode ser belo integramente, é desproporcionado em suas relações mais importantes. Quando, pelo contrário, não acontece nenhuma destas duas coisas, encontramo-nos ante o espetáculo mais belo e mais amável de todos os que o homem pode contemplar. Se um corpo qualquer tem pernas demasiado longas ou é desproporcionado por alguma forma de desproporção, não só é feio como ao mesmo tempo é causa para si mesmo de infinitos males: quando tem que trabalhar se expõe a sortimentos excessivos, a muitas convulsões, e como seu caminhar é também difícil, corre sempre o perigo de cair ao solo. Pois isto mesmo deve-se dizer desse composto de corpo e alma ao qual chamamos homem mortal.

Quando a alma é mais forte que o corpo e a alma se aborrece, enfraquece-o por dentro e o enche de enfermidades, e quando se entrega com veemência a alguma classe de estudos ou investigações, consome-o completamente. Se se dedica a ensinar ou a discutir com a palavra, em particular ou em público, entre a emulação e as discussões que se suscitam, abrasa o corpo e o destrói. E como gera nele fluxos e catarros, confunde à maioria dos que se dizem médicos, pois atribuem a enfermidade a causas diferentes. Quando o corpo é grande e superior à alma, e cresceu unido a uma inteligência débil e raquítica, havendo no homem duas classes de desejos, o da nutrição, que procede do corpo, e o da intelecção, que se deriva do mais divino que há em nós, os movimentos da parte mais forte se impõem e dilatam-se em seus domínios. O âmbito da alma fazem-no, pelo contrário, estúpido, desmemoriado e preguiçoso, e geram a pior de todas as enfermidades: a ignorância.

Há só um remédio contra essas duas enfermidades: não mover a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma, a fim de que, defendendo-se mutuamente, conservem seu equilíbrio e sua saúde. Por conseguinte, o matemático ou o que se dedica por completo a qualquer outra atividade da inteligência deve tratar também de mover o corpo e fazer exercícios ginásticos; por sua vez, o que cultiva cuidadosamente seu corpo deve, em compensação, restituir à alma seus movimentos e dedicar-se à música e à filosofia, se quiser que o chamem merecidamente bom, ao mesmo tempo que belo. Dessa mesma maneira é necessário cuidar destas partes diversas, imitando de certo modo a forma do todo. O corpo, com efeito, esquenta-se e arcja-se por dentro graças às coisas que nele entram, e umedece-se e seca com as de fora, e experimenta os efeitos que acompanham essas transformações em virtude dos dois movimentos. Se entregamos rapidamente ao movimento o corpo que se acha em repouso, ele sucumbe dominado por aquele. Se imitamos a que antes chamamos mãe e nutriz do todo e nunca deixamos o corpo; em repouso, se o movemos sempre mantendo-o continuamente em comoção, o corpo mesmo saberá defender-se com seus recursos naturais contra os movimentos de dentro e os de fora. Ao agitar assim regularmente as afeições e as disposições que andavam errantes pelo corpo, colocamos as peçasinhas por ordem e de acordo com sua classe e filiação, segundo o que antes dissemos a propósito da totalidade do universo, umas em relação às outras, não defrontadas como inimigas de maneira a gerar guerras e as enfermidades do corpo, e sim colocadas por afinidade para que restituam ao corpo sua saúde.

Ora, de todos os movimentos do corpo, o mais excelente é o que nasce nele por sua própria ação, pois é incomparavelmente o mais próximo por afinidade ao movimento intelectivo e ao movimento do todo. O que depende de outra causa não é tão bom. O pior de todos, sem dúvida, é o que move o corpo quando se encontra deitado e em repouso, e o faz de um modo parcial e acionando de fora. Por isso, de todas as classes de purificação e de todos os procedimentos para dar consistência ao corpo, o primeiro e melhor é o dos exercícios ginásticos; segue em importância o movimento rítmico e oscilante dos corpos suspensos no ar, como o que nos balança em uma embarcação ou em qualquer outra classe de veículo sem produzir fadiga; a terceira forma de movimento, que algumas vezes é muito útil quando se a necessita, mas que em outro caso nunca deve ser aceita por uma pessoa inteligente, é a cura pela catarse medicamentosa. Porque as enfermidades não devem ser irritadas e provocadas pelo emprego de medicamentos, a menos que não ofereçam qualquer gravidade. As enfermidades têm certa analogia com a natureza dos seres. Ora, cada um destes nasce sujeito a determinados prazos de existência que são comuns a toda a espécie. Os seres vêm ao mundo para viverem o tempo– que o destino lhes marcou, prescindindo agora dos acontecimentos inevitáveis. Os triângulos de cada espécie de seres foram criados desde o princípio do mundo de tal maneira que só podem durar até certo momento e além desse limite a vida lhes seria impossível. Pode-se dizer o mesmo da natureza constitutiva das enfermidades: quando se destrói esta natureza com medicamentos antes da hora decretada pelo destino, não é raro que do que nada era provenham enfermidades maiores, e o que era pouco se converta em muito. Por isso deve-se impor um regime segundo os ócios e as propensões de cada um e nunca devemos excitar com medicina os humores das enfermidades.

Já é o bastante ao que se refere à totalidade do ser vivo, à sua parte corporal e à maneira de dirigi-la ou de ser dirigido por ela, se quisermos viver de acordo com a razão. Quanto ao elemento que irá reger o homem, o primeiro e o principal é dispô-lo para que, da maneira mais bela e excelente, exerça seu governo. Porém, explicar todas estas coisas rigorosamente e em seus pormenores, exigiria uma obra à parte. Não obstante, atendo-nos ao que dissemos, e ainda que seja provisoriamente, não seria supérfluo pôr um remate a esta peroração da seguinte maneira: já dissemos em várias ocasiões que se abrigam em nós três formas diferentes de alma, alojadas separadamente, cada uma das quais possui, por certo, seus movimento próprios. Assim, pois, diremos agora o mais brevemente possível que dessas três porções ou formas da alma, a mais débil de todas é por necessidade a que se mantém inativa, a que deixa seus movimentos em repouso. A que se exercita faz-se, pelo contrário, extraordinariamente robusta. Por isso temos que procurar que cada uma delas cumpra seus movimentos regulares e apropriados.

E quanto à porção da alma que é em nós soberana, deve-se ter em conta que Deus nos deu a cada um como que um verdadeiro espírito divino, do aual já dizíamos que estava alojado precisamente na porção mais elevada de nosso corpo e que nos arrebata da terra para o alto pela sua natureza divina, e porque é, propriamente falando, uma planta celeste, não uma planta terrestre. Desse ponto, com efeito, onde nossa alma teve sua origem primeira, a divindade suspendeu nossa cabeça e a raiz de nosso ser, e mantém todo nosso corpo ereto. Quando o homem se entrega às paixões e ao empenho descomedido do triunfo, de uma maneira intensa e exclusiva, seus critérios acerca do bem e do mal tornam-se necessariamente efêmeros, até onde é possível; acaba sendo de todo mortal, como quem nada poupou para isso e dedicou-se a acrescer a parte mortal de sua natureza. Aquele que cultivou a ânsia de saber e entregou-se com entusiasmo à investigação da verdade, e de tudo quanto há nele exercitou de preferência o pensamento das coisas imortais e divinas, se chegar a alcançar a verdade, é necessariamente inevitável, até onde a natureza humana pode participar da imortalidade, que nenhuma porção dela se perca para ele, e por haver dado atenção com o maior cu:dado à parte divina de sua alma e se preocupado sobretudo da divindade que nele habita, é necessário que seja feliz de uma maneira diferente dos demais. E este regime, é o mesmo para todas as partes da alma: deve-se dar a cada uma o exercício e a nutrição que lhe convém. Ora, os movimentos que têm afinidade com o que há de divino em nós são os pensamentos e os movimentos circulares do todo. São eles os que cada um de nós deve seguir; os movimentos circulares que se referem ao processo e ao desenvolvimento e que foram destruídos em nossa cabeça, são aqueles que devemos restaurar voltando a aprender as harmonias e as revoluções do todo; quem contempla faz-se semelhante ao contemplado, segundo süa natureza primeira, e uma vez que a ela se igualou, alcançará a perfeição da vida suprema que foi posta pelos deuses nos homens, tanto para o presente quanto para o porvir.

(Timeu, 86 b-90 d.)

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