Tradução em português de José Carlos Baracat Júnior
6. Foi dito que se deve considerar a essência inteligível, a que pertence toda ela à ordem da forma, como impassível. Mas, uma vez que também a matéria é uma das coisas incorpóreas, ainda que o seja de outro modo, deve-se investigar também a seu respeito, de que modo ela é, caso seja passível, como se diz, modificável de acordo com todas as coisas, ou se também ela deve ser concebida como impassível e qual é o modo de sua impassibilidade.
Primeiro, porém, é preciso que nós, que abordamos esse tema e falamos acerca da natureza da matéria, entendamos que a natureza do ente e a essência e o ser não são tal como pensa a maioria. Com efeito, o ente, o que verdadeiramente se pode chamar ente, é ente realmente; e isso é o que é completamente ente; isto é, aquilo em que nada se afasta do ser. Uma vez que o ente é perfeitamente, não precisa de nada para conservar-se e para ser, mas ele é a causa de que as demais coisas, as que parecem ser, pareçam ser. Com efeito, se tais coisas são ditas corretamente, é necessário que o ente seja em vida e em vida perfeita; caso contrário, se fosse carente, não seria mais ente do que não-ente. Isso é o intelecto e a total sabedoria. Logo, ao mesmo tempo em que está determinado e delimitado, não há nada que o ente não seja por sua potência, nem por uma potência desse tipo; porque seria deficiente. E por isso lhe corresponde a eternidade, a invariabilidade e a irreceptividade em relação a tudo, e nada se insere nele; pois, se admitisse algo, admitiria algo distinto de si: e isso é não-ente. É preciso que ele seja ente plenamente; deve, portanto, alcançar o ser tendo por si mesmo todas as coisas; e deve ser todas as coisas juntas51 e todas devem ser uma só.
Se, pois, definimos o ente com esses termos – e o devemos, ou o intelecto e a vida não proviriam dele, mas seriam adventícios ao ente e proviriam do não-ente, e o ente seria sem-vida e sem-intelecto, ao passo que o que não é verdadeiramente ente possuiria essas as coisas, como se elas devessem existir nos inferiores e nos posteriores ao ente: porque o anterior ao ente é aquele que provê essas coisas ao ente, sem que ele mesmo necessite delas -; se, então, o ente é tal, é necessário que ele mesmo não seja um corpo nem o substrato dos corpos, mas que o ser dessas coisas seja o ser dos não-entes.
E como pode a natureza dos corpos ser não existente? Como pode ser não existente a matéria sobre a qual se sustentam os corpos, as montanhas, as rochas e a terra toda, que é sólida? ? também todas aquelas coisas que são resistentes e que com seus golpes forçam as coisas golpeadas a reconhecer sua realidade? Se, então, alguém dissesse: “como podem ser entes e entes reais as coisas que nem pressionam, nem forçam, nem são resistentes, são nem em absoluto visíveis, como a alma e o intelecto? E, com efeito, no caso dos corpos, como pode ser mais ente que a terra, que é estável, aquele corpo que se move mais e pesa menos do que ela? Como o pode ser aquele que está acima desse? E como o pode ser o próprio fogo, que já a ponto de escapar da natureza corpórea?”
Creio, contudo, que as coisas que mais se bastam a si mesmas molestam menos as outras e são menos penosas para as outras, enquanto que as que são mais pesadas e térreas, porquanto são deficientes, caem e são incapazes de levantar a si mesmas, estas, ao despencarem por sua debilidade, ocasionam golpes com sua queda e sua inércia. Efetivamente, os corpos mortos são também mais desagradáveis ao chocarem-se e ocasionam choques violentos e que machucam, ao passo que os animados, como participam do ser, quanto mais participam do ser, tanto mais agradáveis são a seus vizinhos. Víamos que o movimento é como uma vida existente nos corpos e, como guarda semelhança com esta, por isso é mais pujante nos seres que têm menos corpo por razão de que a deficiência em ser faz a coisa deficitária ser mais corpo. Acrescente-se que, das chamadas afecções, percebemos mais claramente que o que é mais corpo é mais passível, a terra mais que os demais elementos e os demais elementos na mesma proporção. Porque os demais elementos, se se dividem, se juntam e se unificam de novo quando não medeia nenhum obstáculo, ao passo que, se se parte qualquer massa de terra, os dois pedaços ficam separados para sempre, como acontece com as coisas que são débeis por natureza, as quais, com um ligeiro golpe, tal como foram golpeadas, assim ficam e assim perecem. E o que chegou ao máximo grau de corpo, como chegou ao máximo grau de não-ente, não tem forças para reunificar-se. São, pois, outros os corpos que se causam ruína uns aos outros se os golpes são pesados e violentos. Por outro lado, se um corpo débil se choca com outro corpo débil, é forte contra ele e é um não-ente chocando-se com um não-ente. Eis, pois, nossa resposta aos que identificam os entes com os corpos e garantem sua verdade pelo testemunho dos impactos e pelas aparições que se apresentam através da sensação: comportam-se como aqueles que sonham, que creem que são ativas as coisas que veem como reais, quando não são mais que sonhos. Pois a sensibilidade é própria de uma alma dormente, já que tudo quanto da alma está no corpo está dormindo. Mas o despertar verdadeiro consiste na ressurreição verdadeira: à parte do corpo, não com o corpo. Porque a ressurreição com o corpo é um passar de um sonho a outro, como quem passa de um leito a outro, mas a verdadeira consiste em afastar-se totalmente dos corpos, os quais, como fazem parte da natureza contrária à alma, possuem o contrário a ela no que tange a essência. E isso é atestado também pela geração dos corpos, assim como por sua fluência e por sua corrupção, que são impróprias à natureza do ente.