Bois de Gerião

Mitologia Grega – Hércules – Doze Trabalhos – Bois de Gerião

Paul Diel

Em seguida, o herói combate Gérion, gigante de três corpos, símbolo das três formas de perversidade: vaidade banal, devassidão e dominação. Esta mesma significação expressa-se de uma maneira mais explícita no combate contra Anteo, o Anti-Deus, o adversário do espírito, símbolo claro da banalização. Suas forças renascem cada vez que, vencido e cambaleante, ele toca a terra. A imagem representa os desejos banais que, a cada”novo contato com a “terra” (representação dos gozos terrestres), exaltam-se imaginativamente, recuperando assim um novo vigor de paixão e de atividade banal. O herói vencerá Anteo esmagando-o em seus braços, erguendo-o do solo (imagem de sublimação).

Mário Meunier

Como décima prova, Euristeu exigiu que Hércules lhe trouxesse os bois ruços de Gérion. O gigante colossal, cujos enormes flancos se ramificavam por tres corpos, habitava uma ilha ao fundo do Ocidente e possuía uma manada de bois vermelhos, guardados por um monstruoso carreiro e por um cão de tres cabeças. Para obedecer à nova ordem, Hércules partiu para a região em que o Sol se deita, margeando a costa africana. Chegado ao estreito que separa a Europa da África, ergueu duas colunas, uma sobre cada continente, para comemorar sua passagem. Foram chamadas, mais tarde, as Colunas de Hércules. Como o Sol muito forte incomodasse Hércules, o herói distendeu seu arco para soltar flechas contra ele. Assombrado com essa audácia, o Sol, para acalmar o valente filho de Alcmena, e permitir-lhe continuar sua caminhada, emprestou-lhe a grande taça de ouro que, quando ele desce do Céu, transporta-o, através do Oceano e da noite, até a praia de onde deve tornar a subir ao Céu e recomeçar a iluminar o mundo. Hércules embarcou nessa taça e chegou, sem embaraço, ao termo da viagem. Tendo posto pé em terra, o filho de Alcmena passou a noite sobre alta montanha, esperando a manada. Mas o cão vigilante que guardava os bois vermelhos farejou-o, ladrou e para devorá-lo, precipitou-se contra ele. Com um golpe de clava o Herói o matou. O vaqueiro, que havia acorrido, teve a mesma sorte. Finalmente, após ter matado a flechadas o formidável Gérion, Hércules embarcou novamente, com toda a manada, na imensa taça que servia de navio ao Sol. Para voltar ao ponto de partida, Hércules atravessou várias regiões. Quando chegou às margens do Ródano, foi atacado pelos habitantes que enchiam as praias e que invejavam a beleza dos bois. Seus adversários eram tão resolutos e numerosos que, após haver esgotado a aljava, e haver ele próprio recebido ferimentos, viu-se reduzido a nada. Implorou, então, o auxílio de seu pai e Zeus fez cair sobre os assaltantes do filho uma saraivada de pedras. Desde esse dia, a vasta campina ficou inteiramente coberta de pedras e é esta a origem, diz-se, dos seixos da Crau. Deixando a Gália, Hércules atravessou a Itália, a Ilíria, e a Trácia. Mas no momento em que se julgava no fim de seus sofrimentos, um moscardo, enviado por Hera, enlouqueceu a manada, dispersando-a pelas altas montanhas. O filho de Alcmena reuniu com esforço a maior parte; o que não pôde juntar e levar a Micenas permaneceu nas florestas, onde tornou-se selvagem.

Robert Graves

1. O tema principal dos Trabalhos de Hércules é a execução de certas façanhas rituais antes de ele ser aceito como consorte de Admeto, ou Auge, ou Atena, ou Hipólita, ou como quer que se chamasse a rainha. Este selvagem Décimo Trabalho pode ter-se referido originalmente ao mesmo tema, caso registre o costume patriarcal helênico segundo o qual o marido comprava a noiva com o produto de um roubo de gado. Na Grécia homérica, as mulheres eram avaliadas em termos de cabeças de gado, como ainda sucede em algumas partes da África oriental e central. Mas foram acrescentados ao mito outros elementos irrelevantes, até mesmo uma visita à Ilha Ocidental da Morte e seu exitoso retorno, carregado de espólios. A história irlandesa paralela é a antiga fábula de Cuchulain, que penetrou no Inferno — Dun Scaith, “cidade das sombras” —, trazendo de volta três vacas e um caldeirão mágico, apesar das tormentas que os deuses dos mortos desencadearam contra ele. A urna de bronze em que Hércules navegou até a Eriteia era uma embarcação adequada para fazer uma visita à ilha da Morte, e talvez tenha sido confundida com o caldeirão de bronze. Na Décima Primeira Tabuleta da epopeia babilônica de Gilgamesh, o herói realiza viagem semelhante a uma ilha sepulcral através do mar dos mortos, utilizando suas próprias roupas como vela. Tal episódio chama a atenção por seus muitos pontos de semelhança entre os mitos de Hércules e Gilgamesh, e é provável que sua fonte comum seja suméria. Assim como Hércules, Gilgamesh mata um leão monstruoso e veste-se com sua pele (vide 123. e); agarra um touro do céu pelos chifres e o domina (vide 129. b); descobre uma erva secreta da invulnerabilidade (vide 135. b); faz a mesma viagem que o Sol (vide 132. d); e visita o Jardim das Hespérides, onde, após matar um dragão enroscado numa árvore sagrada, é recompensado com dois objetos sagrados procedentes do mundo subterrâneo (vide 133. e). As relações entre Gilgamesh e seu companheiro Enkidu parecem-se muito com as de Teseu, o Hércules ateniense, com seu companheiro Pirítoo, que desce ao Tártaro e não consegue regressar (vide 103. c e d ); e a aventura de Gilgamesh com os Escorpiões foi atribuída ao beócio Órion (vide 41. 3).

2. As colônias gregas pré-fenícias instaladas na Espanha, na Gália e na Itália sob a proteção de Hércules contribuíram para o mito. Do ponto de vista geográfico, as Colunas de Hércules — às quais chegou um grupo de colonos em torno do ano 1100 a.C. — são Ceuta e Gibraltar.

3. Contudo, num sentido místico celto-ibérico, as Colunas são abstrações alfabéticas. “Marwnad Ercwlf”, um antigo poema galês do Livro Vermelho de Hergest, trata do Hércules celta — que os irlandeses chamavam de “Ogma da Face Solar”, e Luciano, de “Ogmius” (vide 125. 1) — e conta como Ercwlf ergueu “quatro colunas da mesma altura, com as extremidades cobertas de ouro vermelho”, ao que parece, as quatro colunas de cinco letras que formavam o alfabeto bárdico de vinte letras, conhecido como o Boibel-Loth (A deusa branca, pp. 133, 199 e 278). Tudo indica que, em torno do ano 400 a.C., esse novo alfabeto, cujos nomes das letras gregas se referiam à viagem celestial de Hércules na taça solar, sua morte no monte Eta e seus poderes como fundador de cidades e juiz (A deusa branca, p. 136), substituiu o alfabeto arbóreo de Beth-Luis-Nion, os nomes de cujas letras se referiam ao sacrifício homicida de Cronos cometido pelas mulheres selvagens (A deusa branca, p. 374). Posto que as górgonas possuíam um bosque na Eriteia (“Ilha Vermelha”), identificada por Ferécides como a ilha de Gades, e posto que “árvores” em todas as línguas célticas significam “letras”, sou levado a interpretar que “a árvore que toma diversas formas” é o alfabeto Beth-Luis-Nion, cujo segredo as górgonas guardavam em seu bosque sagrado até serem “aniquiladas” por Hércules. Nesse sentido, a incursão de Hércules na Eriteia, onde matou Gerião e o cão Ortro — o astro Sírio —, refere-se à substituição do alfabeto de Cronos pelo alfabeto de Hércules.

4. Hesíodo (Teogonia 287) chama Gerião de tricephalon, “de três cabeças”. Outra leitura possível da mesma palavra é tricarenon, que significa o mesmo. “Tricarenon” evoca Tarvos Trigaranus, o deus celta com duas mãos esquerdas, que aparece na companhia de grous e de um touro no altar de Páris, derrubando um salgueiro. Geryon, palavra que não tem nenhum significado em grego, parece ser uma forma muito usada de Trigaranus. Posto que os grous, tanto na tradição grega quanto na irlandesa, estão associados aos segredos alfabéticos (vide 52. 6) e aos poetas, Gerião deve ser o guardião da deusa do alfabeto anterior: na verdade, Cronos acompanhado pelos Dáctilos. Na ilha sepulcral de Eriteia, Cronos-Gerião, que no passado foi um herói solar do tipo Hércules-Briareu, transformou-se num deus dos mortos, com Ortro como o seu Cérbero; e esse Décimo Trabalho, portanto, foi confundido com o Décimo Segundo, Menete figurando em ambos. Embora o “fruto sem caroço parecido com a cereja” surgido a partir do sangue de Gerião possa ter sido o bago do medronheiro, nativo da Espanha, a história foi influenciada pelo caráter sagrado de que, para Cronos-Saturno, está revestida a cereja do corniso, que dá frutos temporãos (A deusa branca, p. 171) e que produz uma tinta vermelha como a cochonila. O papel de Crisaor na história é importante. Seu nome significa “cimitarra de ouro”, a arma associada ao culto de Cronos, e se dizia que ele era filho da górgona Medusa (vide 33. b; 73. h e 138. j).

5. Nórax, neto de Gerião, filho da união de Eriteia com Hermes — diz-se que Hermes levou o alfabeto de árvores da Grécia para o Egito e voltou com ele —, parece ser uma grafia equivocada de Norops, palavra grega para “face solar”. Tal genealogia foi invertida pelos mitógrafos irlandeses, que dizem que o seu próprio Gerião, cujas três pessoas eram conhecidas como Brian, Iuchar e Iucharba — uma forma de Mitra, Varuna e Indra —, tinha Ogma como avô, e não como neto, e que seu filho era o deus-sol celto-ibérico Lugh, Llew ou Lugos. Eles também insistiam no fato de que o alfabeto lhes havia sido legado pela Grécia via Espanha. O corvo de Cronos era consagrado a Lugos, segundo Plutarco, que escreve (Sobre rios e montanhas V) que “Lugdunum” — Lyon, a fortaleza de Lugos — “assim se chamava porque um auspício de corvos sugeriu a escolha de sua localização, pois lug significa corvo no dialeto alobrígida”.

6. Vérrio Flaco parece ter sido mal interpretado por Sérvio; é mais provável que tenha dito que “o tricéfalo Garano (Gerião), e não Caco, era o nome da vítima de Hércules, e que Evandro auxiliou Hércules”. Isso coincidiria com a versão segundo a qual a mãe de Evandro, Carmenta, suprimiu o alfabeto de treze consoantes, o Beth-Luis-Ninon de Cronos, em favor do Boibel-Loth de quinze consoantes de Hércules-Ogmius (A deusa branca, p. 272). O rei Juba, citado por Plutarco dizendo que Hércules ensinou aos súditos de Evandro o emprego das letras, era um magistrado honorário de Gades e, sem dúvida, conhecia muito bem o saber alfabético local. Nessa história de Evandro, Hércules é claramente descrito como inimigo do culto de Cronos, posto que suprime o sacrifício humano. Suas andanças pela Itália e pela Sicília foram inventadas para explicar os numerosos templos que lhe foram erguidos naquelas terras; e sua competição quíntupla com Érix, para justificar as expedições colonizadoras do século VI que o heraclida Pentatlos de Cnido e o espartano Dorieus realizaram à região de Érix. O Hércules venerado na cidade siciliana de Agira pode ter sido um antepassado que conduziu da Itália os sícelos pelo estreito em torno do ano de 1050 a.C. (Tucídides: VI. 2. 5). Ele também visitou a Cítia. Os colonos gregos das costas ocidental e setentrional do mar Negro incorporaram um Hércules cita, um herói arqueiro (vide 119. 5), na mixórdia do Décimo Trabalho. Sua noiva, a mulher com cauda de serpente, era uma deusa Terra, mãe das três principais tribos citas mencionadas por Heródoto. Numa outra versão do mito, representada pela balada inglesa The Laidley Worm, quando ele a beija três vezes, ela se transforma na “mulher mais bela jamais vista”.

7. A historieta de Alcioneu parece ter-se desprendido do mito do ataque dos gigantes ao Olimpo e de sua derrota infligida por Hércules (vide 35. a-e). Mas o roubo do gado de Hélio na Eriteia, cometido por Alcioneu, e depois na cidadela de Corinto, é uma versão mais antiga do roubo do rebanho de Gerião realizado por Hércules, pois o seu proprietário era um consorte solar ativo da deusa-Lua, e não um deus dos mortos desterrado e enfraquecido.

8. A flecha que Hércules disparou contra o sol do meio-dia devia ser aquela disparada contra o zênite durante a cerimônia de sua coroação (vide 126. 2 e 135. 1).

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