Excertos da trad. de Eduardo Sucupira FIlho
O diálogo platônico oferece três aspectos, combinados em graus diversos: é um drama, é, na maior parte do tempo, uma discussão, envolve, algumas vezes, uma narrativa em sequência.
De início, um drama: o lugar, a época, as circunstâncias são indicadas com precisão, como em Protágoras (309 a – 310 a). O diálogo é sempre, como no Banquete (172-174), uma narrativa. Ao contrário, o que é frequente, à medida que Platão progride, o diálogo começa ex abrupto1. Dos, diálogos é o que apresenta dramaticidade mais visível, por força das características e peripécias que mantêm o leitor em suspenso. Há outros, em que a ação dramática quase desapareceu, embora não haja nenhum, nem mesmo os mais áridos, como o Filebo ou o Sofista, por exemplo, que não encerrem traços de humor ou sátira2. Os personagens são: de início, Sócrates; depois, aqueles com os quais Sócrates manteve relações, sofistas ou filósofos estrangeiros, jovens de famílias nobres atenienses, homens políticos da cidade. Em suma, como nas comédias de Aristófanes, personagens conhecidos por todos, dos quais muitos ainda viviam e outros tinham parentesco com Platão. Só nos diálogos da velhice são introduzidos personagens fictícios e pouco reais, como o estrangeiro do Sofista e das Leis, ou Filebo.
Sabe-se a predileção com que ele retratou Sócrates, o do Protágoras, ainda jovem e sem autoridade em meio a sofistas ricos e afamados, o Sócrates plenamente cônscio de sua missão moral e social da Apologia, o que inquieta a consciência de Alcibíades (Banquete) e que, revelando a Ménon sua ignorância, excita-o como o faria a tremelga, o “parteiro dos espíritos” do Teeteto, enfim, o defensor da vida filosófica no Górgias e no Ménon. Depois, Sócrates desaparece, e, com ele, o tom dramático do diálogo. É pouco provável que o jovem Sócrates, que, no Fédon (97 c e sq.), se instrui, lendo Anaxágoras, ou, no Parmênides (128 e e sq.), submete a doutrina das ideias ao velho filósofo de Eleia, seja outro que o próprio Platão.
Em torno de Sócrates, reúne-se uma multidão de sofistas, retores, exegetas, poetas, profetas, cujos conhecimentos são postos à prova pelo mestre. Platão ironiza-os cruelmente: Hípias, que se jacta de ensinar e praticar todas as artes; Protágoras, que não sabe terminar uma discussão sobre a possibilidade de ensinar a justiça, a não ser sob a forma de mito; Górgias, o retor, cujo ensino quer ser puramente técnico, sem cuidar da justiça de sua causa; Ion, intérprete de Homero, que não segue senão a inspiração, a exemplo de seu modelo poético; Êutifron, o pretenso santo, que se preocupa mais em evitar a ofensa religiosa do que a injustiça.
Vêm em seguida os jovens, desde Cármides, de origem nobre, primo da mãe de Platão, tipo comedido e decente na atitude e na conversação, qualidades conhecidas pelo nome de sofrosyne, até Cálicles, do Górgias, o ambicioso de origem modesta, inteligente, culto e tenazmente decidido a impor-se aos atenienses.
Finalmente, os burgueses e políticos de Atenas: Crítias, o tirano, parente de Platão, que, no Cármide, se mostra violento e irrespeitoso para com Sócrates; Laques e Nícias, excelentes militares, que se perdem em discussões estratégicas, quando se lhes pergunta o que deve aprender um jovem; a inquietante figura de Ânitos, no Ménon, o burguês conservador, receoso da liberdade de espírito de Sócrates e que o acusará ante os juízes.
Muitos diálogos apresentam uma progressão dramática e momentos críticos, a exemplo das peças teatrais. Às vezes, o cenário é extraído da vida quotidiana, como no Banquete, onde cada conviva, depois de beber, faz o elogio do amor, ás vezes, reflete os acontecimentos dramáticos do processo e morte de Sócrates. Mas, algumas vezes, a progressão advém do próprio caráter dos personagens. Isso acontece sempre que o diálogo é interrompido pela impaciência do interlocutor, que recusa submeter-se, por mais tempo, ao exame de Sócrates. Quando este trata com um personagem de caráter violento, como o Cálicles do Górgias, o diálogo ameaça encerrar-se, a cada instante3. O Górgias, em conjunto, proporciona o mais belo exemplo de movimento dramático: três episódios, perfeitamente encadeados; três conversas de Sócrates com Górgias, Pólos e Cálicles. Górgias, ao não perceber senão o lado técnico da aprendizagem da oratória, é incapaz de dar a sua arte qualquer finalidade moral. Pólos, porque é tímido e respeitador dos preconceitos, não fará mau uso da retórica. Um tipo violento, como Cálicles, encontrará no aprendizado de Górgias, não um freio, mas, ao contrário, um instrumento para melhor exercer a violência. Assim, todas as consequências da atitude intelectual de Górgias se desenrolam de modo vivo e dramático.
Ante tal intensidade de vida, é de indagar se Platão não pretendia, sob a égide dos interlocutores de Sócrates, a maioria mortos, desde muito tempo, descrever pessoas vivas. É certo que Platão não cuida exatamente da cronologia, o que ocorreria se tivesse realmente intenção de retratar personagens contemporâneos da juventude ou dá maturidade de Sócrates. De outra parte, alguns personagens, mesmo nos diálogos do primeiro e segundo períodos, são-nos desconhecidos, como Cálicles, ou os sofistas Eutidemo e Dionisodoro, aos quais Platão confere os principais papéis no diálogo Eutidemo. Não se tem o direito, portanto, de fazer de cada uma dessas figuras, conhecidas ou não, contemporâneos de Platão. A verdade parece ser que a maior parte dos retratos de Platão são estilizados; conquanto palpitantes de vida, têm um valor universal; e Platão pôde, assim, emprestar aos personagens as preocupações de sua época e as suas próprias.
Quer se trate ou não de diálogos apresentando interesse dramático, a parte permanente e substancial do diálogo é, salvo exceção, o debate. A uma pergunta (por exemplo: O que é a justiça? A virtude pode ser ensinada?), o examinando replica por uma fórmula, a qual será submetida à prova da discussão, de acordo com a única regra indicada no Ménon (75 d). “Do lado do examinando, a discussão (ou dialética) consiste, não só em dar respostas verdadeiras, mas respostas que decorrem daquilo que ele reconhece saber.” A discussão pressupõe toda uma série-de postulados admitidos ou hipóteses, com os quais se confronta a fórmula a discutir, para se verificar a concordância ou não com eles. Refutada a primeira fórmula, o examinando propõe uma segunda, depois uma terceira, e assim por diante, sem que se chegue sempre a um resultado definitivo. Assim, Cármide, no diálogo homônimo, interrogado por Sócrates sobre a natureza da sofrosyne, responde que consiste em “agir com ordem e vagar” (159 b), mas como Cármide, por outro lado, reconhece que a sofrosyne se inclui entre as mais belas coisas, e é mais belo agir com rapidez do que lentamente, segue-se que há desacordo entre sua fórmula e aquilo que ele reconhecia como verdadeiro. Deve, pois, abandoná-la e propor outra.
A discussão ou dialética não é, por conseguinte, de nenhum modo, o mesmo que os torneios oratórios dos sofistas, o confronto de duas opiniões adversas sustentadas cada uma por um interlocutor: aqui, o examinando só exprime opiniões positivas. Sócrates “não sabe senão que nada sabe”. Não tem outro papel que o de inquirir ou pôr à prova o interlocutor, fazendo-lhe ver se está ou não de acordo consigo mesmo.
Em princípio, a dialética platônica permanecerá sempre aquilo que tem sido nos diálogos socráticos. O Teeteto considera, sucessivamente, as diversas opiniões de Teeteto sobre a ciência, assim como o Hípias maior refuta as opiniões sucessivas sobre o belo. Entretanto, o quadro exterior e a significação parecem mudar aos poucos. Os diálogos socráticos são, com efeito, menos uma inquirição de pessoas do que um exame de suas opiniões. O interesse incide mais sobre o primeiro do que sobre o segundo. Os conceitos de temperança, coragem, piedade não são por si mesmos ou para si mesmos objeto de pesquisa. Busca-se, antes de tudo, se aqueles que tém ou pensam ter essas virtudes as conhecem; em uma palavra, se conhecem bem a si mesmos. O benefício do debate será o “conhecimento de si mesmo”.
Parece que, à medida que Platão se desembaraçava da influência socrática, o centro de interesse deslocava-se, levando as pessoas às próprias realidades. Do mesmo modo, atribui mérito maior ao resultado obtido. Que se comparem, por exemplo, o Protágoras ao Ménon. Ambos versam sobre o mesmo tema: pode-se ensinar a virtude? No primeiro desses diálogos, Sócrates contenta-se em situar Protágoras em conflito com suas próprias opiniões, pois que responde, primeiro, sim, e depois, nào. Tal é a pretensão, mais do que o próprio tema em exame. No Ménon, ao contrário, Platão, já mestre da Academia, indica os métodos positivos de pesquisa e ensino4. E mais: nos últimos diálogos, o método socrático está completamente esquecido; no Filebo (11 b), por exemplo, a dialética não mais consiste na inquirição da pessoa, por Sócrates, mas comporta duas teses opostas que se confrontam, das quais uma é sustentada pelo próprio Sócrates.
Assim, no decurso da atividade literária de Platão, a dialética perde aos poucos o interesse dramático e humano, e tende a transformar-se em método impessoal, que se interessa nos problemas por si mesmos.
O terceiro aspecto que distinguimos na obra de Platão é a narrativa continuada. Esta apresenta-se, nas obras do primeiro e segundo períodos, sob duas formas, com grande afinidade mútua: o discurso, que sustenta uma tese, e o mito, que a relata. O discurso acerca de uma tese é posto, em geral, na boca dos interlocutores de Sócrates, e reveste, amiúde, o caráter de paródia. Os sofistas expõem sua opinião em uma conferência pomposa, e Platão diverte-se, imitando o estilo de Protágoras, Pródico ou Górgias5. Às vezes, trata-se de discursos que, sem ser, propriamente, conferencistas de sofistas, delas se aproximam, tais os elogios do amor no Banquete, em que Platão parodia, sucessivamente, a maneira do retor Lísias (discurso de Fedro), de Pródico (Pausânias), de Hípias (Erixímaco), de Górgias (discurso de Agatão)6, e também o discurso de Cálicles, no Górgias. O de Lísias, no Fedro, destina-se a dar um exemplo concreto dos defeitos da técnica dos oradores. Mas, em todos esses casos, os discursos continuados servem, de algum modo, como pano de fundo para destacar o método verdadeiramente científico de investigação, que é a dialética. Sócrates “não possui a arte dos grandes discursos” (Protágoras, 336 b), e se seus interlocutores, por inclinação natural, tentam furtar-se à discussão, pronunciando um discurso (como Protágoras), ou se estão sempre prontos, como Cálicles, a abandonar a partida, enquanto Sócrates não os deixa falar, Sócrates, inversamente, queixa-se de que Protágoras não quer fazer distinção entre “discussão entre pessoas reunidas para esse fim e um discurso ao povo”. (Ibid.) É que, em um discurso, se trata” somente de persuadir o ouvinte, lisonjeando-lhe os preconceitos, mas não de procurar a verdade e a concordância próprias.
Não obstante Platão, no curso de sua carreira, não manteve sempre essa atitude hostil para com a arte do discurso, a que deu, parece, um valor crescente. Os métodos de persuasão conservam importância e valor, quando se trata de impor pontos de vista que não admitem demonstração rigorosa. Comparem-se a esse respeito as Leis, obra da velhice, e a República; nas Leis não há mais debate, mas há, como compensação, para cada categoria de leis, grandes prólogos, que se destinam a levar à convicção, mais do que provar. Tal é, no livro X, o célebre prólogo às leis concernentes à religião7. O estilo de Platão teve poderosa influência, e ali encontramos mais do que o lineamento de uma pregação moral, o que, posteriormente, irá tornar-se norma quase total da filosofia. De outra parte, a partir do Fedro (269 c e sq.), mostra Platão a possibilidade de reforma da eloquência e como, associando-se à dialética, dar ao discurso ordem e consistência. No mesmo diálogo, dá exemplo desse estilo majestoso e oratório (245 c e sq.), que oferece contraste tão grande com a vivacidade maliciosa dos primeiros diálogos.
Quanto ao mito, é, antes de tudo, um adorno do discurso, e, como tal, utilizado por sofistas e oradores, que Platão parodia, como, por exemplo, o mito de Prometeu, em Protágoras8, ou o do nascimento de Eros, nos discursos do Banquete. Mas logo, no Górgias, Platão relata os mitos pela boca de Sócrates. Esses mitos apresentam certas características que não as de simples ornamento oratório. Em primeiro lugar, não constituem partes de um discurso mais extenso, mas são tratados por si mesmos, como ocorre com os mitos do final do Górgias (523 a) e da República (X,614 b). Em ambos os casos, no momento em que começa o mito, a discussão se esgota e o conceito de justiça é posto a descoberto. Acrescentam-se, portanto, à discussão, sem dela fazer parte. Em segundo lugar, esses mitos não se referem jamais à genealogia dos deuses, mas unicamente ao destino da alma ou, de modo mais geral à história humana. Os mitos concernentes à vida futura relacionam-se naturalmente, desde a Odisseia, a uma geografia fantástica, que descreve o país das sombras. Esse arranjo geográfico assume, no mito platônico, um lugar cada vez mais importante. Enquanto o Górgias mal vai além das representações homéricas, o Fédon especula sobre os acidentes da superfície terrestre. Na República (616 c – 617 b), sobretudo, e no Fedro (247 c), relacionam-se, intimamente, a história da alma e o sistema astronômico. O mundo inteiro é o cenário em que evolvem as almas dos homens e dos deuses. Poder-se-ia, quase, afirmar que as especulações astronômicas não surgem, em Platão, senão a favor do mito da alma. O mecanismo das coisas é tal (Leis,X, 904 b), que a alma é naturalmente atraída para as regiões em que deve sofrer castigo ou fruir de recompensas. É que o próprio mundo é um grande ser vivo e animado. O Timeu, ideado sob forma de narrativa ou mito, descreve como se forma a alma do mundo e como ela se forma no corpo. Essa astronomia religiosa teve, em prosseguimento, considerável influência.
O mito orienta-se algumas vezes, embora raramente, para a forma de narrativa histórica, como no diálogo inacabado da velhice, Crítias, onde são descritas a Atenas pré-histórica e a Atlântida.
Finalmente, no Timeu (61 c e final), a exposição continuada do mito liga-se, constantemente, a uma outra forma de exposição continuada, que é a de um tratado fisiológico ou médico; ao final do diálogo, as ciências experimentais, como as concebiam os jônios ou os médicos, ensaiam tardia e fugitiva aparição e não encontram, normalmente, expressão em qualquer das formas literárias citadas.
Dessa extraordinária complexidade de formas, drama e comédia, dialética, discursos continuados e mitos, que, segundo as épocas, estão diferentemente dosados e, ademais, apresentam suas próprias modificações, é impossível fazer abstração para bem avaliar a filosofia platônica.
No Teeteto (143 b), ele chega a criticar o primeiro processo. ↩
Comparar Protágoras, 361 a-d e Ménon, 86 c, 87 b. ↩
Protágoras, 320 c – 323 a; 337 bc; Hípias, I, 291 d; Górgias, 48 c. ↩
Fedro, Pausânias, Erixímaco, Agatão são discípulos de cada um desses retores ou sofistas. ↩
Sobre a importância da persuasão, ver Leis, 903 ab. ↩
Protágoras, 320 c – 323 a. ↩