Bréhier: A ORIGEM DA CIÊNCIA. REMINISCENCIA E MITO

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

Para compreender o Platão da maturidade, é da mais alta importância ter presente ao espírito os dois planos de conhecimento intelectual. A sua distinção relaciona-se toda uma série de problemas. Em primeiro lugar, o Platão puramente socrático, que se contentava em submeter à prova as fórmulas ou soluções dadas pelo interlocutor, deixava no ar a origem das próprias fórmulas. Se elas eram arbitrárias, que possibilidade tinham de estar de acordo com a realidade? Tal é o sentido da questão sofistica proposta por Ménon (Ménon, 80. d); a investigação é impossível se se ignora o que se pesquisa, como se torna inútil se se a conhece. É preciso, pois, que o interlocutor tenha já o espírito orientado para a realidade, que tenha conhecido essa realidade e que a investigação e o conhecimento não sejam senão uma “reminiscência” (81 d).-Se o espírito, por simples reflexão (orientada ou não pelas perguntas do mestre) pôde descobrir verdades, é que ele as possuía em si mesmo; através da simples reflexão, o escravo interrogado por Sócrates descobre que o dobro do quadrado de um outro está construído sobre a diagonal (82 b- 85 b). Ora, descobrir uma verdade de que se tem posse é relembrá-la. A teoria da reminiscência nunca é teoria inativa, mas teoria estimulante. Graças a ela,”devemos ter valor constante e esforçar-nos por investigar e reencontrar a memória do que perdemos de lembrança” (81 de – 86 b). Tornamo-nos, assim, “melhores, mais enérgicos, menos indolentes”. A reminiscência é a primeira condição da autonomia do espírito de investigação.

Contudo, essa teoria implica, por seu turno, a grave afirmação da preexistência da alma (81 b). A imortalidade da alma, de que Platão duvidou nos primeiros diálogos (Apologia de Sócrates, 29 ab), torna-se agora condição da ciência. A afirmação seca e abstrata da preexistência não é suficiente. Platão, sem dúvida, pensou que essa crença não tomaria corpo, sempre que ela pudesse ser representada por um mito. O mito, que descreve a existência da alma fora do corpo, era, sob a forma primeira que tomou no Górgias (523 a), completamente independente das preocupações do Ménon; narrava somente como a obra da justiça continuava depois da morte. Nos diálogos subsequentes, o mito conserva, sem dúvida, em sua maior parte, a mesma característica e permanece como relato de um julgamento divino. Todavia, um reparo é feito no Fedro (248 ac ), com bastante destaque, qual seja, a maneira pela qual a alma adquiriu, antes de penetrar no corpo, o conhecimento das realidades, cujo reconhecimento reencontrará durante sua vida terrestre. Acompanhando os deuses do céu em seu curso circular, ela vê, em um “plano além do céu”, essas realidades “sem cor e sem forma” que são as ideias, a justiça em si, a temperança, a ciência. Depois, ligadas a um corpo, as almas, às quais as circunstâncias possibilitaram ver melhor, tornar-se-ão almas de filósofos capazes de relembrança.

Destarte, as ideias tornam-se, no Fedro, elementos constitutivos do mito da alma; situam-se além do mundo sensível, no plano supraceleste que a alma contempla. Essa tendência a uma espécie de realização mítica e imaginativa das ideias é, talvez, um escolho na filosofia de Platão; mas percebe-se que ela depende da teoria da reminiscência, que é também uma condição da ciência. Mito e ciência, se querem ultrapassar as hipóteses matemáticas, encontrar-se-ão presos por um laço indissolúvel.