Bréhier: COMUNICAÇÃO DAS IDEIAS

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

O que, por seu turno, vai o Sofista demonstrar é a absoluta necessidade da hipótese. O diálogo tem por objeto as dificuldades suscitadas pela definição do sofista. Se dizemos, com efeito, que é aquele que não possui senão aparência de conhecimento (233 c), ele tergiversará, respondendo que o erro é impossível, dado que consistiria em pensar o não-ser. Ora, não é certo que o não-ser não é (236 e-237 a; 241 d)?

Para resolver essa questão, Platão procede a uma revisão critica das opiniões dos filósofos sobre a definição do ser. Mas essa crítica leva a um resultado surpreendente: a impossibilidade de definir o ser em si mesmo, separado de outra coisa. Eis como: quando os jônios e Parmênides procuram definir o ser, eles o definem, uns como múltiplo, o outro como uno, mas lhe dão determinações que não convêm senão ao ser. Em que sentido o ser dos jônios é um par de termos? Se não é nem um nem outro, em particular, há, pois, não mais dois termos, mas três; se é, ao mesmo tempo, uno e outro, não se trata mais de dois termos, mas de um só. Em que sentido, por sua vez, Parmênides apresenta o ser como uno? Como ele não é idêntico à unidade, haverá um todo composto do ser e do uno; ou bem esse todo é, e então o ser não é mais do que uma parte do ser, ou não é, e então o ser não é o todo. Os jônios e Parmênides misturavam o ser com outra coisa diferente dele, não o separando dessas determinações quantitativas (243 e – 245 e).

Em contraposição, esses homens “terríveis” que não acreditavam senão no que tocavam com as mãos, e que “identificavam o ser com o corpo”, e os partidários das Ideias, que não viam nas coisas sensíveis senão fluxo e devenir incessantes, que não encontravam o ser senão em “certas ideias inteligíveis e incorpóreas”, tinham, uns e outros, o vezo de restringir o sentido do ser. Pode-se, afinal, reduzi-lo apenas a um corpo? É forçoso admitir realidades, como a justiça, que são efetivas, pois aparecem e desaparecem na alma. Ou se deve, como os “partidários das ideias”, restringir o ser a essas realidades fixas e imóveis, que são as ideias? Menos ainda poderiam, a esse respeito, ter a pretensão de nelas apreender o “ser total”. O “ser total contém, necessariamente, a inteligência, e, por conseguinte, a alma e a vida; e, sendo inteligente, animado e vivo, não pode ser imóvel” (246 a – 249 a). Essa polêmica dual entre materialistas e idealistas aplica-se a filósofos contemporâneos de Platão, cuja personalidade seria difícil determinar. Entre os primeiros, reconhecer-se-ia Antístenes, que já foi visto em Teeteto. Quanto aos segundos, a dificuldade é grande, pois os únicos partidários das ideias que conhecemos nessa época são o próprio Platão e sua escola. Não é de crer que Platão critique uma concepção de ideias, que fora a sua própria, a mesma que analisa no começo do Parmênides, e que a considere, depois, ultrapassada? A essa multiplicidade de ideias isoladas e fixas, como vimos no Fédon, oporia, agora, o ser total (248 e), essa expressão misteriosa que parecia abranger não só a ideia ou o objeto conhecido, mas o sujeito cognoscente, a inteligência e a alma na qual reside. Há aqui um esquema do que irá ser esclarecido no Timeu.

Em qualquer caso, a marcha de seu pensamento permanece clara: aos materialistas, como aos partidários das Ideias, ele condena pelo fato de não terem visto no ser esse poder de agir e de sofrer, essa vida que Platão nele introduz. Mas essa censura fá-lo cair na dificuldade que houvera notado em Parmênides e nos jônios. “Não é justo, diz o estrangeiro de Eleia, que conduz a discussão, que se nos apresentem agora as perguntas que nós mesmos propúnhamos aos que sustentavam que o todo era o quente e o frio (250 a)?” Oscilamos, necessariamente, de uma noção do ser muito restrita a uma noção muito extensa; e, achando-a muito pobre, acrescentamos-lhe atributos: movimento, vida, inteligência, que a ultrapassam.

A impossibilidade de pensar o ser em si mesmo e sem relação com outros termos, revela-nos uma necessidade, ou seja, a comunicação e a mistura entre termos, tais como ser, movimento, repouso etc. O que o pensamento alcança não são jamais elementos isolados, mas sempre mistos. O objeto do pensamento, como a palavra, composta de vogais e consoantes, ou a música, composta de sons agudos ou graves, é feito de conceitos que se unem uns aos outros. Tentar definir os conceitos fora dessa união é a causa provável do resultado sempre negativo dos diálogos de Sócrates. Não se atinge um conceito senão através das relações que ele mantém com os outros. Daí decorre nova maneira de encarar a dialética. Esta é a arte que proporciona as regras da mistura de conceitos, como a música proporciona as regras da união dos sons (253 ad).

Essa concepção da dialética acha-se, sem dúvida, próxima do que será a lógica de Aristóteles, mas com uma diferença. Em primeiro lugar, não se trata de misturar conceitos previamente definidos. Platão indica-o com singular vigor: qualquer atributo que se possa dar a uma noção, ela o possui, não por si mesma, mas pela participação com outra ideia: “separar tudo de tudo é fazer desaparecer completamente todos os discursos; nada se pode formular a não ser pela ligação das ideias entre si” (259 e). O pensamento passa, portanto, do indeterminado ao determinado. Em segundo lugar, e pela mesma razão, a arte da dialética procede, hão da aplicação de regras gerais a casos particulares, mas do exame direto de cada noção, que nos leva dela mesma para noções com as quais deve unir-se: assim, o repouso e o movimento misturam-se com o ser, mas são incapazes de se misturarem entre si (254 d). Contudo, se o movimento é ser enquanto participa do ser, ele é não-ser na medida em que difere do ser, isto é, na medida em que participa do outro (255 e). Parece que, em face do conhecimento direto e imediato dessas relações, o papel primordial é desempenhado por essa intuição intelectual que Platão, na República, colocara no alto da hierarquia dos conhecimentos (252 e). E, por isso, a dialética platônica difere tanto do pensamento discursivo, como o método cartesiano difere da lógica.