DESENVOLVIMENTO DA HIPÓTESE DAS IDÉIAS (Bréhier)

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

Retrocedamos, agora, ao desenvolvimento da filosofia propriamente dita. Viu-se como o método por hipótese utiliza o raciocínio discursivo, que se limita a explicar como as consequências se encadeiam às hipóteses. Contudo, o método ficaria incompleto, se, após haver empregado as hipóteses, não se as examinasse em si mesmas, para ver se se justificam ou não. Assim, no Fédon, Platão utiliza as ideias e a participação das ideias, a título de hipótese, a fim de resolver o problema da causalidade física e provar a imortalidade da alma. Entretanto, uma vez resolvidos esses problemas, é necessário provar o valor da própria hipótese.

Platão submete a teoria das ideias a uma prova desse gênero, no começo do Parmênides (130 a -135 c). Efetivamente, antes de examiná-la, Platão lança-a como uma hipótese, para resolver as dificuldades que Zenão, o discípulo de Parmênides, opôs à existência do múltiplo (128 e-130 a). Se se põe “de um lado, as ideias, e de outro, as coisas que dela participam, pode-se, facilmente, conceber como uma coisa se apresenta, ao mesmo tempo, una e múltipla. É que o uno e o múltiplo existem independentes da coisa; e a coisa participa, concomitantemente, dessas duas ideias. Assim é que uma mesma coisa pode incluir contradição semelhante e dessemelhante, grande e pequena”.

Platão mostra-nos o velho Parmênides sorrindo ante o ardor do jovem Sócrates, que expõe essa solução. Parmênides já não procura saber se ela resolve a dificuldade de Zenão em face do múltiplo, mas examina-a em si mesma. De início, a participação das coisas nas ideias é impossível, isso porque se muitas coisas participam de uma mesma ideia, ou bem a ideia é integral em cada uma delas, e então a ideia se separa de si mesma, o que é absurdo, ou bem não está nelas senão em parte, e, então, deveria dizer-se que uma ideia, tal como a do pequeno, é necessariamente maior do que cada uma de suas próprias partes, o que é, também, absurdo (131 a – 131 e). Ademais, a intenção da teoria das ideias é afirmar uma ideia única, como, por exemplo, do grande, por cima da multiplicidade de todos os termos grandes. Mas essa unidade é impossível, porque, se temos o direito de apresentar uma grandeza em si acima das grandezas múltiplas, por força de sua semelhança, é preciso, pela mesma razão, apresentar outra magnitude acima das grandezas múltiplas e da primeira grandeza, e assim ad infinitum (131 e – 132 b). Dir-se-á, em resposta à primeira dificuldade, que a coisa que participa da ideia é a ideia, náo como parte do todo, mas como um retrato que participa de seu modelo? Faz-se preciso, então, inversamente, que o modelo se assemelhe ao retrato, que a ideia seja semelhante à coisa. Ora, segundo os princípios da teoria, não há semelhança senão onde há participação de uma mesma ideia. Deve-se, pois, colocar acima da coisa e da ideia uma outra ideia, da qual participem as duas, e assim ao infinito (132 a -133 a). Em suma, há incompatibilidade entre a natureza da ideia e a função a que se destina, dado que ela deve ser objeto de conhecimento. Ora, é evidente que ela não pode ser conhecida, porque, se existe em si mesma, não pode estar em nós. Uma realidade em si não pode ser conhecida a não ser por uma ciência em si, da qual não participamos. Inversamente, atribuir a Deus o conhecimento em si, ou ciência das ideias, é recusar-lhe o conhecimento das coisas exteriores às ideias (133 b – 134 e).

Segundo essa crítica, desfaz-se tudo o que parecia constituir o valor da hipótese das ideias: a ideia náo é uma explicação das coisas, dado que a participação é impossível1; não é uma unidade no múltiplo, pois que ela se dissiparia em uma infinidade de ideias; não é objeto dé conhecimento, porque está radicalmente separada de nós. Toda a hipótese do Fédon é aqui posta à prova.

Na mesma época, e em contrapartida, Platão, no Teeteto, é levado a fazer revisão do conjunto de concepções que os outros filósofos fizeram da ciência. Platão, desde o primeiro momento, dirige-se aos que afirmam que a sensação é conhecimento (151 e). Na República (478 a e sq.), postulara como coisa evidente por si mesma que o sensível, em fluxo perpétuo, desvanecendo-se incessantemente, não podia ser objeto de conhecimento, porque continha características opostas. Nesse ponto, demonstra-o ele, diretamente, sem fazer a menor alusão a sua teoria positiva. Além disso, acomete contra um sensualismo particular. Náo é aos homens endurecidos “que não crêem senão no que podem prender com as mãos” (155 e), mas a esses filósofos sutis que, seguindo as pegadas de Heráclito e Protágoras, resolvem todo conhecimento exato na consciência imediata que cada homem tem de sua própria sensação presente. Assim, o homem é, como disse Protágoras, a medida de todas as coisas (160 c), em um mundo perpetuamente em movimento, onde a permanência e a fixidez seriam a morte e fariam desaparecer ao mesmo tempo o ser e o conhecimento. Assim como a centelha salta da fricção de dois corpos, a qualidade sensível e a sensação nascem, também, de uma espécie de fricção de um agente sobre o paciente; nascem juntas, e nada são uma sem a outra (156 a – 157 a). Nenhuma qualidade é real em si; nenhuma sensação, estável. Umas e outras, arrastadas no movimento universal, têm, a cada momento, uma evidência completa e total, mas que desaparece a cada instante, para dar lugar a uma outra (179 c). Tais são as consequências às quais conduz o mobilismo universal dos velhos fisiólogos jônios; Platão encontra, a essa altura, adversários, junto aos quais não os prende a discussão socrática (179 e- 180 b), porque tal discussão implica que se convencionem certos postulados fixos. Como seria isso possível, se na medida em que se busque apreender-lhe as palavras, o adversário muda imediatamente e foge à discussão?

Platão, que possui senso agudo acerca do fluxo das coisas sensíveis, faz, portanto, todo o possível para mostrar a força de seus adversários; afasta com desdém as objeções vulgares, por exemplo, a de que Protágoras não tem o direito de ensinar os homens, pois se cada um é a medida das coisas, cada qual é tão sábio quanto os outros; e se a sabedoria não mais consiste em passar do erro à verdade, ela tem ainda um bom papel a desempenhar, rejeitando as opiniões nocivas e favorecendo as opiniões úteis (160 e- 162 de).

Entretanto, não pretendia ele refutar essa tese, senão integrando-se nela e seguindo-a até o fim. Se o homem é a medida de todas as coisas, é preciso dar-se conta da opinião de todos os homens; e todos eles receariam enganar-se nas matérias em que se reconhecessem incompetentes e reconhecessem a competência daqueles a quem se dirigem. Protágoras, se quer permanecer fiel a si mesmo, é obrigado a confessar-se em erro. O fato de os homens se reconhecerem mestres, médicos mais hábeis que os próprios médicos frente ao mal que se teme, ou conselheiros políticos capazes de prever o que é útil à cidade, é o suficiente para refutar o que Protágoras afirma. Indubitavelmente, esse conhecimento tem alcance sobre o futuro, mas persiste o fato de que a evidência imediata da sensação não é atingida senão por aquele que a experimenta. A réplica de Platão é de que essa evidência é inefável, porque enunciar aquilo que está em movimento, afirmar aquilo que se vê, é deter o movimento ou imobilizar a sensação. Não se tem, portanto, o direito de afirmar o que se vê nem o que se sabe. Antes que se possa dizê-lo, a evidência atual é substituída por outra (169 d -1 72 b; 182 d).

Saber não é, porém, sentir; não será mais razoável julgar, ou, mais exatamente, emitir juízos verdadeiros? (187 b). O juízo ou opinião verdadeira, que aqui tratamos, tem por objeto as coisas sensíveis. Mas o juízo sobre as coisas sensíveis faz necessário algo que não pode ser percebido pela sensação, porque, se julgamos que os objetos existem, que são idênticos ou diferentes, semelhantes ou dessemelhantes, as qualidades próprias do objeto serão bem percebidas pelos sentidos; mas a existência, o mesmo e o outro, o semelhante e o dessemelhante são termos gerais ou comuns, relações que não podem ser dadas pelos sentidos. É, portanto, da reflexão sobre os dados dos sentidos que a alma julga. Se essa reflexão conduz à verdade, se se enunciam relações exatas, atinge-se o conhecimento (184 b- 186 d). Para que essa tese seja sustentável, seria, desde logo, imperioso que se pudesse discernir o juízo verdadeiro do juízo falso. Ora, todo juízo (Platão retoma a conhecida tese dos erísticos), falso ou errôneo parece impossível, porque o erro não pode, de modo algum, consistir na confusão; não se podem confundir duas coisas, e, menos ainda, se são conhecidas as duas ou ambas ignoradas; ou se se conhece uma, desconhecendo a outra (188 a -189 a; 190 c). Tampouco consiste em julgar que é o que não é, pois equivaleria a confirmar o não-ser, isto é, no sentido platônico, que consiste em tomar por objeto de seu juízo o que não tem conteúdo de conhecimento, o que é totalmente indeterminado; enfim, a não opinar em absoluto. Essa dupla crítica do erro (cuja primeira parte está reproduzida sob formas diferentes) supõe que Platão ponha, agora, em dúvida o que admitira na República, ou seja, um estado intermediário entre o saber e a ignorância, correspondendo a uma realidade intermédia entre o ser e o não-ser; porque, se a opinião falsa é impossível, é porque não se pode senão saber ou ignorar, e que, ao julgar-se, não se pode julgar senão o ser. O que reforça a argumentação do Teeteto é que a opinião não é tida como intermediária entre o saber e a ignorância, seja como saber, seja como ignorância. Ela é apresentada como um saber na crítica do erro, e é, basicamente, o que torna impossível a opinião falsa, pois não se pode opinar senão sobre o que é; o que significa que, se a opinião é conhecimento, todas as opiniões se equivalem. Ao contrário, na última parte da argumentação (201 a-c), é vista como ignorância, dado que um orador hábil pode convencer os ouvintes de fatos que eles o conhecem diretamente, e que, todavia, são exatos; julgam verdadeiro, sem ter conhecimento do que julgam.

Não é suficiente, pois, julgar acertadamente para possuir o conhecimento. E não bastaria aduzir a esse juízo verdadeiro a enumeração de elementos de que se compõe a realidade e o modo pelo qual se agrupam (201 d)? Conhece-se uma sílaba, quando se conhecem as letras que a compõem. Essa concepção do conhecimento, como análise lógica do sentido das palavras, parece ter sido a de Antístenes, e a razão pela qual Platão a rejeita é muito instrutiva. Não haveria, com efeito, senão conhecimento do composto, e não de elementos simples, isto é, nosso conhecimento não seria feito senão de ignorâncias associadas. Para Platão, portanto, o conhecimento não pode consistir em pura e simples justaposição que não íenha sua razão de ser na natureza de elementos justapostos (203 a – 204 a).

Assim, segundo o Teeteto, qualquer hipótese que se faça sobre a natureza do conhecimento é defensável. Mas, de conformidade com o Parmênides, a hipótese das ideias está também repleta de dificuldades. Nenhuma das hipóteses dos diálogos precedentes se mantém: com a teoria das ideias caem todas as considerações sobre os intermediários entre o conhecimento e o erro, entre o ser e o não-ser; e, menos ainda, do meio-saber, da inspiração, do amor.


  1. Já o Fédon (100 d) revela muitas dúvidas sobre a natureza da participação, indagando se é presença da ideia na coisa ou comunhão da coisa com a ideia