Bréhier: EXERCÍCIO DIALÉTICO DO PARMÊNIDES

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

Entretanto, uma coisa persiste: é o impulso metódico que dera nascimento a essas hipóteses, e que, em sequência, vai renová-las e rejuvenescê-las. Não o dogma das ideias, mas o esforço metódico que dá sentido ao platonismo. Tal é a significação do conjunto do Parmênides. Uma vez destruída a teoria das ideias, Parmênides incita o jovem Sócrates a continuar a exercitá-la segundo o método das hipóteses, que Platão tanto apreciara no Ménon. Faz-se preciso “não somente, quando a hipótese é posta em discussão, examinar o que decorre dessa posição”, mas também ver o que resulta da negativa (135 a). É num exercício desse gênero que versa a segunda parte do Parmênides. Buscam-se todas as consequências da hipótese posta pelos eleatas: o uno é; depois, os resultados da hipótese contrária: o uno não é. Os quadros dessa investigação são de primordial importância, porque conservam um valor geral, independente da hipótese em exame. Para cada uma dessas duas hipóteses, é preciso retirar, de princípio, as consequências que trazem para o Uno; depois, as consequências que trazem para as coisas diferentes do Uno. Investigar os resultados é pesquisar os atributos que se devem dar ou recusar ao Uno, em cada uma das hipóteses. Mas, para isso, é indispensável uma relação de atributos mais gerais (desses termos comuns de que nos falava no Teeteto), que se possam adjudicar ou recusar a um sujeito qualquer. Platão admite uma espécie de lista de categorias, de que cada termo contem, ademais, dois opostos: o todo e a parte; o começo, o meio e o fim; a reta e o círculo (forma); em outra coisa e em si mesma; em movimento e imóvel; o mesmo e o outro; semelhante e dessemelhante; igual e desigual; mais velho, mais jovem ou contemporâneo. Mas é importante salientar que a ordem citada nunca é. para Platão, arbitrária, no sentido de que a atribuição ou a não-atribuição de cada uma delas ao objeto da pesquisa é sempre consequência lógica da atribuição ou não-atribuição da que a precede. Assim, na primeira hipótese, porque se demonstrou que o Uno não tem partes ou todo, pode-se prosseguir com a demonstração de que não tem começo nem fim (144 e – 145 b); e, dado que não tem começo nem fim, pode-se passar á demonstração de que não tem forma geométrica (145 b). Essas categorias não são, pois, quadros preparados de antemão, mas surgem, por assim dizer, á medida e ao compasso da demonstração. A noção do Uno se enriquece, então, gradualmente, da mesma maneira por que se enriquece a noção de uma figura matemática, cujas propriedades se vão descobrindo, por via de consequência.

Os resultados da investigação são desconcertantes, por converterem a interpretação do Parmênides num problema muito difícil. Com efeito, da hipótese: o uno ê, mostra Platão que se pode deduzir, por raciocínio, uma dupla série de consequências; na primeira, é dado recusar ao Uno cada um dos pares de termos opostos, já citados, e que, consequentemente, não têm partes nem todo, começo ou fim etc.; na segunda, demonstra-se, ao contrário, que se lhe devem atribuir cada um desses pares. Da mesma hipótese conclui-se, para outras coisas que o Uno, que se lhes deve atribuir, por sua vez, cada um dos opostos. Da hipótese contrária à primeira: o uno não é, conclui-se, logicamente, que se faz necessário atribuir e depois negar ao Uno os pares de termos que se haviam negado e afirmado na primeira hipótese; e, em seguida, atribuir e negar os mesmos pares às coisas diferentes do Uno. Em uma palavra: Platão parece assumir a tarefa de demonstrar que uma mesma hipótese apresenta consequências contraditórias e que duas hipóteses contraditórias têm consequências idênticas.

Para neutralizar essa contradição, os neoplatônicos deram de Parmênides a complicada interpretação que veremos mais adiante. Supuseram que em cada uma das séries de consequências, a palavra uno e a palavra é não encerravam o mesmo sentido. Pode-se, pois, afirmar do Uno os termos contrários, porque não estão sob a mesma relação. Mas nada autoriza semelhante interpretação. O significado dessa estranha dialética parece ser bem diferente. Se se considera com atenção a crítica das ideias do início do diálogo, percebe-se que incide menos sobre a tese das ideias, tomadas em si mesmas, do que sobre as relações de participação que há entre as coisas sensíveis e as ideias. Em virtude dessa participação, as ideias deveriam dividir-se em partes ou separar-se de si mesmas ou multiplicar-se até o infinito. Ante tal dificuldade, restaria fazer abstração, momentaneamente pelo menos, do aspecto das ideias naquilo que são explicativas das coisas sensíveis, para considerá-las em si mesmas, ou instituir essa dialética, já claramente definida na República (511 b), que, “sem nada utilizar do sensível, serve-se das ideias para ir, mediante as ideias, a outras ideias, e terminar nas ideias”. Esse é o programa que o Parmênides começa a executar; supõe, relações entre o uno e o ser, e disso deduz todas as consequências possíveis, permanecendo no domínio puramente intelectual, sem a menor alusão às coisas sensíveis, das quais as ideias podem ser modelos. Não se trata mais, como no Fédon, de explicar os fenômenos pelas ideias, mas passar de um campo, onde o conhecimento não é possível, em que as hipóteses se mostram impotentes, a uma região onde o conhecimento é possível. O que o Parmênides revela é a fecundidade das hipóteses acerca do relacionamento entre as ideias.