Bréhier: FILOSOFIA E POLÍTICA — A JUSTIÇA E A TEMPERANÇA

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

Só por abstração é possível separar a política de Platão de sua filosofia. Suas grandes obras são, ao mesmo tempo, filosóficas e políticas: o Górgias, em que mostra os perigos de uma política não baseada na razão; a República, onde a filosofia é utilizada como o único meio de chegar a uma política viável. A trilogia Sofista, Político e Filósofo (Cf. indicação do plano de conjunto. Sofista, 217 a), de que o último diálogo ficou em projeto, tendia, sem dúvida, a mostrar as capacidades políticas do filósofo. A trilogia Timeu, Crítias, Hermocrates, dos quais não escreveu senão o primeiro diálogo e o começo do segundo, devia, após a formação do mundo, descrito no Timeu, tratar da revolução das cidades, de sua ruína e restabelecimento. As Leis, enfim, são verdadeiro manual de legislação. Não menos legítimo é separar a filosofia da política, em Platão como em Augusto Comte. Como esquecer que o impulso para a filosofia lhe vem de Sócrates, que insiste com veemência, na Apologia, sobre sua missão social?

Platão, como Sócrates, crê firmemente na missão social do filósofo. Após haver retratado, na República, o tipo de cidade ideal, ele pergunta sob que condições poder-se-á realizar um regime semelhante. Seria suficiente uma só transformação, “mas que não é pequena nem fácil, embora seja possível…, que os filósofos sejam reis na cidade, ou que os reis e dinastas sejam bons filósofos; isto é, que autoridade política e filosofia coincidam” (473 b). É preciso conceder a essa exigência um sentido inteiramente prático. No momento mesmo em que Platão passa da teoria à prática, faz intervir a autoridade política do filósofo. Platão não deixa de insistir sobre o papel ativo que convém ao filósofo: é necessário forçá-lo a descer da contemplação das coisas inteligíveis para ocupar-se dos negócios da cidade (519 d). E, igualmente, preparar para essa reforma a opinião do vulgo, que, em virtude mesmo dos vícios do governo, considera a filosofia como inútil para a cidade (500 b). A filosofia procederá, em relação à cidade, como o pintor sobre a muralha que está ornamentando. De início, deve limpá-la cuidadosamente; depois, desenhará a forma da cidade, comparando-a, a cada instante, com o modelo do justo que ele é capaz de contemplar (501 a).

Como chegou Platão a esse célebre ponto de vista, que parece ser a utopia social por excelência? De onde provém a ideia de uma reconstrução racional da cidade? Qual a significação exata?

A JUSTIÇA E A TEMPERANÇA

Antes de revelar-se, na República, como reformador da cidade, Platão parece haver refletido sobre a justiça, mais como moralista, à maneira de Sócrates, do que como reformador político. Mostrava que o homem devia ser justo, isto é, respeitador das leis, para ser feliz, antes de provar que só o filósofo podia conceber e promover leis justas. E moralista antes de ser político, contrariamente aos jovens ambiciosos de Atenas, imortalizados no Cálicles, do Górgias, que se entregam à política sem preparação política. Dessa moral platônica, os dois pólos estão por assim dizer, no Górgias, que sustenta a justiça contra o banditismo político, e, no Fédon, para quem a vida filosófica consiste em purificar o corpo.

Vejamos, inicialmente, o primeiro dos dois temas No Críton, Sócrates é retratado como respeitador das leis até morrer. É conhecida a famosa prosopopeia, em que as leis de Atenas mostram a Sócrates tudo o que se lhes deve (50 a). Platão tem o sentimento vivo de que delas dependem, não só a segurança, mas toda cultura moral. Mas as leis, objeta Cálicles, não são simples convenções que os homens comuns fizeram para se defender da avidez dos poderosos? Não consiste a justiça natural em relações de força, e o mais forte não deve possuir autoridade (Górgias,482 c- 484 c)? Que é, portanto, essa força de que fala Cálicles? Será a força física pura e simples? Então, ela pertence ao povo, se este tem força para impor as leis (488 be). É, por conseguinte, a força acompanhada de sabedoria e habilidade, ou mais precisamente, do conhecimento racional da política, e coragem para realizar seus objetivos (491 ad). Mas a coragem, que concede autoridade sobre os outros, implica certa forma interior de coragem, que é a autoridade sobre si mesmo ou temperança. Isso porque o bem não é idêntico ao prazer, e se é preciso escolher entre os prazeres que são úteis, bons e saudáveis, não se chega a eles senão graças á temperança, que introduz certa ordem no corpo e na alma, eliminando os desejos contrários a essa ordem (504 c-505 b). Essa digressão sobre a temperança ou virtude da ordem, afim com a igualdade geométrica, é o ponto culminante do Górgias (508 a). Nessa virtude, que Platão intentara definir em Cármides, encontra-se o fundamento de todas as outras: piedade, justiça, felicidade. A temperança é a atividade regulada pela ordem e opõe-se diretamente à atividade brutal e sem freio de Cálicles. Platão entrevira nesse ponto uma verdade, que se torna, assim, o fundo de sua filosofia, que desenvolverá com energia na velhice (Leis, X, 889 e), atividade a que chama de arte, que escolhe e age segundo regras, e é anterior à pretensa natureza desordenada e desregrada que Cálicles quer seguir. O primado da arte, no próprio coração das coisas naturais e da ordem do mundo, é o postulado de toda política como de toda filosofia platônica. A ordem não é conquista humana sobre as forças desordenadas; é, sobretudo, a base do real, que nos é revelado por intuição intelectual.

Se a temperança, com a técnica que discerne e ordena, é a virtude fundamental, o ascetismo do Fédon e o governo dos filósofos, na República, serão dois aspectos inseparáveis dessa virtude. Se ela não parece ocupar nesses dois diálogos o lugar central que tem no Górgias, a ideia que o inspira, a do valor superior e dominador da inteligência, permanece no ponto de partida. No Fédon (82 e sq.), a investigação da verdade acompanha-se da abstenção dos prazeres: a alma está presa ao corpo pelo desejo, e é forçada a olhar através do corpo, onde se encontra aprisionada; mas a filosofia ensina que a visão e as outras sensações estão cheias de erros; ensina a não acreditar senão nela mesma e em seus próprios pensamentos; e dessa forma separa a alma do corpo, e se abstém, tanto quanto possível, dos prazeres, desejos e penas. A verdadeira virtude consiste em libertar-se de todas as afecções; e nesse sentido, a temperança, a justiça, a coragem e a prudência são purificações (69 a).

Mas, por outra parte, a temperança é também uma virtude que prescreve a ordem; não tem menos importância como técnica positiva do que como regra de ascetismo. A conclusão do Górgias é, a esse respeito, significativa, e anuncia a República. Os homens não se tornarão melhores senão graças a uma técnica científica que nunca possuíram os ilustres políticos de Atenas ou os sofistas que instruem a juventude (513 c – 515 d). Em definitivo, a justiça parece ser agora, não mais como no Críton, a simples obediência do indivíduo às leis de seu país, mas antes, a exigência de uma reforma política completa, sob a conduta de filósofos.