Bréhier: FINALIDADE DA FILOSOFIA

Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

A unidade de todas essas formas, aquilo que, de certa maneira, as faz necessárias, consiste no desejo de situar o filósofo na cidade e sua missão moral e social. Na Grécia de então, o filósofo nunca se define por sua relação com outros gêneros de especulação, científica ou religiosa, mas, preferencialmente, por relacionamento e diferenças com o orador, o sofista, o político. A filosofia é a descoberta de uma nova forma de vida intelectual que, de resto, não se pode separar da vida social. Os diálogos retratam esse estilo de vida, e, com ela, todos os dramas e comédias que dela decorrem. Sob certos aspectos, essa filosofia defronta-se com hábitos solidamente implantados na Grécia dessa época, e era inevitável que se produzissem conflitos, de que a morte de Sócrates é uma das consequências trágicas.

O que vem a ser o filósofo? Há em Platão múltiplos retratos.No Fédon (64 e sq.), é o homem que se purificou das manchas do corpo, e não vive senão para a alma, não receia a morte, pois que, após a morte, a alma se separa do corpo. No Teeteto (172c- 177 c), é o homem inábil e pouco destro em suas relações com os semelhantes, que nunca terá situação definida na sociedade humana e continuará sem influência na cidade. Na República, é o dirigente da cidade, e, do mesmo modo, nas Leis (X,909 a), torna-se essa espécie de inquiridor, que, pretendendo a “salvação da alma” dos cidadãos, impõe aos habitantes da cidade a crença nos deuses locais ou ameaça de prisão perpétua. Finalmente, é o entusiasta e o inspirado do Fedro (244 a e sq.) e do Banquete (210 a). Há nesses retratos sucessivos dois traços dominantes que parecem contradizer-se: de um lado, o filósofo deve “fugir do aqui” (Teeteto, 176 a), purificar-se, viver em consonância com as realidades que o sofista ou o político desconhecem. De outro lado, construir a cidade justa, em que se refletem, nas relações sociais, os contatos verdadeiros e rigorosos que constituem o objeto do conhecimento. O filósofo é, de uma parte, o sábio retirado do mundo, e, de outra, o sábio e o justo, o verdadeiro político que dá leis à cidade. O próprio Platão não é, ao mesmo tempo, o fundador da Academia, o amigo dos matemáticos e dos astrônomos, mas também o conselheiro de Dion e de Dionísio, o tirano? Ademais, se, como filósofo, é o inventor ou promotor de uma lógica rigorosa, é também o inspirado, cujo espírito acabaria estéril sem o impulso de Eros, e que não pode engendrar senão o belo (Banquete, 203 c sq., 206 c): a discussão raciocinada desdobra-se em uma dialética do amor, que se traduz por efusões líricas e contemplações místicas (Ibid., 210 e). Sábio e místico, filósofo e político, tais são os traços, comumente separados, que, no curso desta história, não iremos reencontrar unidos senão em alguns grandes reformadores do século XIX. É importante, também, compreender a causa dessa união.