Bréhier: O PROBLEMA COSMOLÓGICO

A noção do misto que possui beleza, proporção e verdade foi o verdadeiro estimulante dos últimos estudos de Platão e lhe permitiu voltar ao problema da explicação das coisas sensíveis pelas ideias, problema que ele havia, sem dúvida, abandonado ante os óbices expostos no Parmênides acerca da participação. Esse é, o objetivo do Timeu. Mas, para melhor captar esse retorno ao interesse pela física, é preciso ver que as coisas sensíveis não se lhe apresentam, como no Teeteto, como um fluir-em incessante evanescência, e sim como partes de um cosmos que é o mais belo dos mistos sensíveis, isto é, mistura ordenada de acordo com relações fixas (26 a; cf. 30 b. o mundo é um ser vivo dotado de alma e inteligência). Se assim é, o problema da explicação do mundo físico não oferece dificuldade especial, e não é mais que um caso particular do problema dialético em geral, que consiste, segundo o Filebo, em determinar a maneira pela qual se formam os mistos. O problema da participação está, portanto, resolvido.

O mundo proveio da passagem da desordem à ordem através da ação de um demiurgo (30 a). O estado de desordem anterior a essa ação é essencialmente o domínio da “necessidade”, de uma necessidade brutal, causa errante não sujeita a qualquer consideração final (47 e – 48 a). Mas essa desordem e necessidade não significam, de forma alguma, uma radical ininteligibilidade. Trata-se de uma espécie de necessidade mecânica, análoga à que Demócrito perfilhava, mas onde Platão introduz, senão a bondade do demiurgo, pelo menos certa fração de inteligibilidade geométrica. A doutrina dos átomos e a dos elementos também se manifestam, mas penetradas do espírito geométrico. Os elementos compõem-se de corpúsculos, e os corpúsculos de um elemento dado distinguem-se uns dos outros, não por suas qualidades, mas pela forma geométrica. Os corpúsculos elementares de cada espécie têm a forma de um dos quatro poliedros regulares: cubo, icosaedro, octaedro e tetraedro; e correspondem, respectivamente, à terra, à água, ao ar e ao fogo. A engenhosidade matemática de Platão, orientada pelas recentes descobertas de Teeteto em estereometria, não se resume apenas a demonstrar que as faces do cubo podem compor-se de quatro triângulos retângulos e isósceles e que as faces de cada um dos outros poliedros, que são triângulos equiláteros, podem compor-se, cada um, de seis triângulos retângulos, cuja hipotenusa é o dobro do lado menor do ângulo reto. As transmutações de elementos, uns em outros, tornam-se perfeitamente inteligíveis (deixando de lado a terra), quando se demonstra que um corpúsculo de água contém tantos triângulos quanto dois corpúsculos de ar, mais um de fogo; e que um corpúsculo de ar contém tanto quanto dois corpúsculos de fogo (53 c – 5 7 c). Eis a razão impondo-se no próprio seio da necessidade. A necessidade bruta aparece na disposição desses corpúsculos e depende da maneira pela qual reagem aos abalos desordenados do receptáculo ou espaço no qual se encontram, como as substâncias agitadas em uma peneira, tendem a se reunir de acordo com suas semelhanças e afinidades (57 bc). A origem da necessidade não está, pois, nos elementos, mas nessa natureza ambígua, “esse conceito bastardo, apenas crível” do receptáculo (52 b). Tal receptáculo parece ser um dos termos indeterminados, de que o Filebo nos fornece exemplos. De modo preciso, é o indeterminado geométrico, no sentido de que não tem qualquer determinação de magnitude e de pequenez, e, ao mesmo tempo, reúne-as todas (50 cd); e o indeterminado mecânico, no sentido de que seu movimento, lentidão e velocidade não possuem qualquer uniformidade (52 e). Esse receptáculo é determinado, primeiro pelos triângulos elementares, e depois pelos poliedros que com eles se formam, nele introduzindo relações fixas de grandeza e pequenez (53 c). Nele, a inteligência do demiurgo vai acrescentar outras determinações, e, em particular, determinações mecânicas.

Isso porque o criador ou demiurgo é, antes de tudo, o criador da alma do mundo (34 cd), e a alma é princípio do movimento (Fedro, 245 c; Leis, 894 d), não no sentido de força mecânica bruta, como o receptáculo, mas princípio do que é regular e fixo no movimento. A alma do mundo é anterior ao corpo que anima e que nela está alojado, mas ela própria é um misto, em que se imprimem, de algum modo, todas as relações aritméticas ou geométricas que se realizam no mundo. Todo misto compõe-se de um limite e de um ilimitado e não se distingue de qualquer outro misto a não ser pelo aspecto que os dois termos apresentam. O limite e o ilimitado, de que se compõe a alma, são a essência indivisível e a essência divisível nos corpos (35 a). Toda determinação numérica e geométrica exige, com efeito, dois termos desse gênero. Aprendemos com Aristóteles que, de acordo com o ensino oral de Platão, os números nascem da ação do Uno sobre a díade indefinida do grande e do pequeno (Metafísica, M, 7, 1081 a, 14 – 15). Todo número e toda forma são o resultado de uma determinação do que era, inicialmente, indeterminado. O misto dessas duas essências uma vez produzido, o demiurgo nele mistura o mesmo e o outro, ou seja, dois termos que são, também, entre si, como o limite e o ilimitado do Filebo. Platão tem o cuidado de esclarecer que o outro não entra na mistura senão pela força; permanece, como se vai ver, princípio de indeterminação. A alma é, pois, composta de três coisas: de princípio, mistura de duas substâncias, divisível e indivisível; depois, o mesmo, e, finalmente, o outro. A alma é então dividida pela ação do demiurgo, de acordo com certos números determinados, que são os termos de duas progressões geométricas: 1, 2, 4, 8…; 1, 3, 9, 27…, entre as quais se inserem médias proporcionais. Depois, ela é dividida em dois ramos, que se cruzam em ângulo agudo, à maneira da letra X, e são recurvados em dois círculos concêntricos, um deles inclinado sobre o outro, como a eclíptica sobre o equador. O círculo do mesmo, animado de um movimento para a direita, isto é, do oriente para o ocidente, permanece único; o círculo do outro, animado de um movimento para a esquerda, ou seja, do ocidente para o oriente, divide-se em sete. Vê-se que, sob o nome de alma do mundo, Platão esforça-se por demonstrar como se chega a uma espécie de construção racional do sistema astronômico, tal como ele concebia, e cujos princípios eram: só existem movimentos circulares; os movimentos são uniformes e a irregularidade aparente do movimento dos sete planetas explica-se pelo fato de estarem animados, além do movimento diurno, de um movimento próprio em sentido contrário. A alma não é mais do que um desenho esquemático (35 a – 36 d).

O Timeu é uma narrativa, um mito. O pitagórico Timeu descreve-nos como se formaram os diversos mistos: alma do mundo, mundo, corpúsculos elementares, sem esperar alcançar mais do que conjeturas verossímeis (29 c-e); tom, cuja modéstia, inspirada em Parmênides, entra em choque com o dogmatismo jônico. Ademais, é claro que, no emprego físico dos esquemas matemáticos, Platão orienta-se por considerações de harmonia e de beleza. A única razão da formação do mundo é que o demiurgo “era bom” (29 e). O Bem subsiste o incondicionado a que toda prova faz referência. A forma esférica do mundo, o fato de que é o único, advém do esforço por imitar a perfeição do modelo (32 b; 31 ab). O tempo, dividido em períodos regulares, dias, meses, anos ligados à existência das revoluções celestes, imita, tanto quanto possível, a eternidade do modelo por seu incessante retorno sobre si mesmo (37 d). No detalhe da fisiologia, que nos expõe, ao final da obra, Platão mostra-se apaixonadamente finalista como o serão os estoicos. O décimo livro das Leis afirma, também, que a providência divina não é somente geral, mas penetra até os menores detalhes na estrutura do universo (903 bc). E porque a teoria do mundo é, antes de tudo, o relato da obra providencial, ela guarda seu caráter arbitrário e intuitivo. O espírito humano não pode senão suspeitar das intenções do demiurgo, sem nunca estar certo delas (29 e – 30 a). Além disso, o demiurgo, ao submeter a necessidade à inteligência (47 e-48 a) e ao esforçar-se por fazê-la obediente, depara com resistências que crescem continuamente. Se o primeiro misto, o corpo do mundo, é feito tão harmonicamente, e se torna imperecível, embora engendrado (41 ab), os mistos parciais, feitos pelos deuses imitadores do demiurgo, os corpos dos animais, estão sujeitos à morte (41 cd, 43 a). A série de mistos segue em perfeição decrescente, e sua conservação está cada vez menos assegurada.

Por um aparente paradoxo, o arbitrário insere-se no conhecimento das coisas físicas na medida em que aí se introduzem as matemáticas: o arbitrário, que é, ao mesmo tempo, liberdade de contemplação, afasta do espírito as ilusões da observação imediata e lhe permite fecundo jogo de hipóteses. Graças, por exemplo, a essa liberdade de espírito, pôde talvez Platão indicar, de passagem, a explicação do movimento diurno pela rotação da terra em torno de seu eixo. (Tal era, desde a Antiguidade, a interpretação da palavra eilloménen (Timeu, 40 b), por PLUTARCO (Questões platônicas, qu. VIII); mas essa interpretação não é certa, e o sentido pode também admitir a imobilidade da terra.)