Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho
A partir desse momento, todo esforço de Platão vai concentrar-se na arte de captar as regras de mistos ou misturas. Esforço singularmente diverso, que vai de exercícios escolares de divisão até a majestosa síntese do Timeu, e leva, além disso, a dar as diretivas e a favorecer o “élã” do pensamento, mais do que criar uma doutrina. No Fedro (265 d), ele definira a dialética por dois movimentos sucessivos; de princípio, “veem-se as coisas dispersas em uma só ideia; depois, por um movimento inverso, dividem-se, ideia por ideia, de acordo com as articulações naturais”. É de ressaltar que a análise ou divisão segue aqui a síntese, e que esta, longe de ser o termo e de seguir a análise, é, ao contrário, destinada a servir de ponto de partida da divisão, e, por isso, essencial à dialética. Os exercícios de divisão que se encontram no começo do Político (258 c- 267 c) e do Sofista (218 d-231 c) mostram, sem reservas, como Platão ensinava a prática da dialética pelos alunos da Academia. A divisão é ali apresentada como processo que serve para determinar, cada vez com maior precisão, um conceito, e conduz, em suma, a uma definição; por exemplo: a política é uma ciência, mas as ciências se dividem em ciências que têm por finalidade o conhecimento e ciências que visam à prática. A política enquadra-se no primeiro caso; as ciências do conhecimento dividem-se, por sua vez, em ciências que prescrevem e ciências que julgam. A política está entre as primeiras, e, assim, de divisão em divisão, chega-se a determinar, cada vez mais, o conceito. E claro que a divisão platônica não é um processo simplesmente mecânico, sem o que não escaparia à crítica de Aristóteles, segundo o qual é inteiramente arbitrário situar o termo sobre o qual incide a investigação em um membro da divisão e não no outro (Primeiros Analíticos, I, 31). Não é, com efeito, processo lógico, mas a intuição pode orientar nesse caso. Ademais, se é uma regra quase geral que a divisão deva ser binária, a regra para verificar essa divisão é pouco clara e suscita grandes dificuldades técnicas que Platão conhecia muito bem, mas que não conseguiu resolver. Uma das mais incisivas é saber como distinguir as divisões arbitrárias, tais como a do homem em gregos e bárbaros; divisões legítimas, como a existente entre macho e fêmea. No primeiro grupo (gregos), está apenas determinado, e no segundo não está senão por exclusão do primeiro. No segundo, temos duas características opostas, igualmente positivas (262 e; 263 b).
Mas que relação há entre as duas concepções da dialética: a dialética como arte da composição dos mistos, no Sofista, e a dialética como arte da divisão? Essa questão é resolvida no Filebo. O diálogo mostra-nos como a arte de compor os mistos tem por resultado a classificação e a divisão em espécies. A reaproximação dos dois aspectos da dialética, antes separados, torna sua noção um pouco mais clara. O misto apresenta-se sob nova forma; todo misto, digno desse nome, não é fusão arbitrária, mas uma combinação fixa de dois elementos: um indeterminado ou ilimitado e outro limitado ou de determinação fixa. O indeterminado é um par de opostos tal, que cada um deles não se define senão em relação ao outro, isto é, que seja em si mesmo inteiramente indefinido: tais são maior e menor, mais agudo e mais grave, mais quente e mais frio, termos puramente relativos e perpetuamente fluentes, dado que aquilo que é maior que uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, menor que outra. O limite ou determinação é uma relação numérica fixa, como o duplo ou o triplo. O misto, vê-se facilmente, resulta da introdução de uma relação fixa no par de opostos. Destarte, os músicos demonstram que uma relação de um a dois, introduzida na díade ilimitada do agudo e do grave, cria a oitava. Pode-se imaginar, do mesmo modo, que uma relação fixa do lento e do rápido cria um movimento regular, de onde podem sair as formas de uma relação fixa de grandeza e de pequenez (Filebo, 23 c – 27 c; sobretudo, 23 d; 26 ad). Essa concepção do misto permite e até implica a divisão de conceitos: a divisão parte de um ilimitado, tal como a voz com suas nuanças infinitas de agudo ou grave; ela introduz certo número de intervalos fixos, os acordes, caracterizados por relações numéricas fixas, como 1/2, 1/3 etc. O conhecimento consistirá em apreender o número e a natureza dessas relações fixas (18 b).
Essa concepção do misto e da divisão não é só do Sofista. Não mais se trata de uma divisão uniformemente binária; no caso. possivelmente mais perfeito, o da música, o número de termos é determinado pelo das relações numéricas possíveis, que são os acordes. Vemos outro exemplo, no Timeu (54 a sq.), onde a divisão em quatro elementos depende do número de sólidos regulares possíveis. E há mais: a mistura de um gênero com outro, no Sofista, vem de sua própria natureza; o ser, para ser o que é, deve participar do mesmo e do outro, e seria como o rudimento de uma relação de necessidade lógica. Ao contrário, o ilimitado e o limite não se atraem nem se implicam; para reuni-los, é preciso um quarto gênero de ser, diferente deles e da mistura: é a causa da mistura (26 e). Isso significa que à ligação logicamente necessária para a qual tendia o Sofista sucedem-se, agora, considerações de harmonia, conveniência, beleza e bondade. A ideia do Bem, que dominava a dialética na República e era suprimida nos diálogos intermediários, retoma aqui, ao mesmo tempo que as matemáticas, um papel de primeira grandeza. E, não podendo definir o Bem em sua unidade, intenta substituí-lo por um equivalente de três termos: beleza, simetria e verdade (65 a). Não faz mais que expor as três condições primordiais, às quais deve responder toda mistura. Os três termos exprimem, cada qual sob aspecto diferente, aquilo que na República ele denominava de incondicionado, o Bem, o qual encerra a explicação.