A Recusa da Aparência (Brun)

A recusa da aparência

Heidegger critica Platão por este ter contribuído para a introdução de uma separação entre o ser e o parecer, separação que não se encontra nos primeiros filósofos gregos para quem o «parecer» é o surgimento, a apresentação do ser; mas poder-se-ia responder que esta atitude de Platão não deve ser explicada como ruptura com uma tradição anterior mais profunda, mas antes como um esforço para lutar contra as aparências sem ser, no seio das quais os sofistas gostavam de se mover: Platão procura o ser da aparência, enquanto os sofistas pregam nas águas turvas do relativismo e do mobilismo.

Sócrates esforçou-se por mostrar-nos que, se ficarmos por uma constatação da multiplicidade das coisas e da diversidade dos indivíduos, os homens estarão condenados a ignorar-se, a odiar-se e a combater-se. O que importa é descobrir, debaixo do múltiplo, uma unidade a partir da qual essa multiplicidade ache a sua razão de ser. A recusa da aparência sem ser encontra-se em todo o lado na obra de Platão. A alegoria da caverna (Rep., 514 a) deu-nos disso o primeiro exemplo; poderíamos encontrar outro no Teeteto: este diálogo não conclui, mas permite a Sócrates eliminar um certo número de pseudo-respostas à questão «o que é a ciência?»; entre outras, a primeira dada por Teeteto (151 e) quando define a ciência com a sensação. Sócrates reconhece nessa definição o ponto de vista de Protágoras para quem o homem é a medida de todas as coisas. Essa posição equivale a condenar-nos a um mobilismo universal, visto que nenhuma sensação é estável; por outro lado, se o homem, ou seja, o indivíduo, é a medida de todas as coisas, seremos obrigados a ter em conta a opinião de todos os homens; por fim e sobretudo, se o homem é a medida de todas as coisas, Protágoras é obrigado a perder a razão, pois a fórmula que ele nos impõe apenas reflete a sua própria medida e não poderia nunca ser erigida em máxima universal.

Por fim, encontramos no fim do livro VI da República uma distinção, feita por Platão, entre quatro objetos do conhecimento aos quais correspondem quatro operações do espírito. Deve distinguir-se, diz-nos Platão (510 a e seg.), as coisas visíveis (to tou oromenou genous) por um lado, e as coisas inteligíveis (to tou nooumenou genous) por outro. Dentro das primeiras estão antes de tudo as imagens das coisas (eikones), ou seja, as sombras e as aparências representadas nas águas e na superfície dos corpos opacos lisos e brilhantes; a conjetura (eikasia) é a operação do espírito que a elas corresponde. Depois, entre as coisas visíveis, encontramos os seres vivos (zoa) , as plantas e os objetos fabricados pelo homem; a crença (pistis) é a operação intelectual que corresponde a eles. Entre as coisas inteligíveis temos de distinguir, por um lado, a matemática, cujas investigações partem de hipóteses e seguem uma via que a leva não ao princípio em si, mas a uma conclusão — o conhecimento discursivo (dianoia) é a operação intelectual que a ela corresponde; e, por outro lado, os inteligíveis superiores nos quais «a alma vai da hipótese ao princípio absoluto (archen anupotheton), sem fazer uso das imagens, como no caso anterior, e realiza a sua investigação por meio apenas das ideias» (510 b); o conhecimento intuitivo (noesis) é aquilo que cor-corresponde a essa investigação.

Esta distinção de quatro tipos de conhecimento mostra-nos claramente que, para Platão, a aparência não pode ressaltar de qualquer processo inteligível e que se o aparecer está ligado ao ser devemos ir daquele até este. Uma tal distinção mostra-nos ainda que a matemática tem na filosofia de Platão um papel proeminente mas puramente propedêutico, como iremos em seguida pormenorizar.

As ideias e a matemática

A teoria das ideias surge pela primeira vez no Crátilo. Este discípulo de Heráclito foi o primeiro mestre de Platão e atraiu provavelmente a atenção deste para as contradições da experiência subjetiva. Não nos admiremos então se este diálogo começa com uma crítica da posição de Protágoras. Sócrates afirma de fato a Hermógenes: «É evidente que as coisas possuem por si um certo ser permanente (ousia) que não é nem relativo a nós nem dependente de nós. Não se deixam levar aqui e ali segundo o capricho da nossa imaginação; mas existem por si, segundo o seu ser próprio e conforme a sua natureza» (386 e). É essa essência que a matemática pode ajudar a descobrir.

No Fédon (102 b) Sócrates faz notar que é verdadeiro dizer de Símias que é mais baixo que Fédon e mais alto que Sócrates; Símias é, portanto, ao mesmo tempo «mais baixo» e «mais alto»; é evidente que estes dois adjetivos não têm significado por si: só uma comparação, uma relação quantitativa pode dar-lhes esse significado. A aparência dá-nos apenas o contraditório, só uma relação inteligível pode explicar as aparentes contradições do universo sensível. Da mesma maneira, no Teeteto (514 c), Sócrates nota que seis ossinhos postos ao lado de quatro ossinhos ultrapassam estes em metade, mas colocados ao lado de doze ossinhos, aqueles mesmos ossinhos são metade destes. Seria portanto necessário dizer que seis é ao mesmo tempo mais e menos numeroso, que vale ao mesmo tempo 3/2 e 1/2.

Para isto tudo a aritmética dá-nos uma explicação compreensível. O número é uma ideia independente da qualidade do objeto sensível, nasce de uma aproximação dentro do espírito e não de uma aproximação no espaço. Na díade unimos e distinguimos ao mesmo tempo, sintetizamos e analisamos; quando falamos do número 2 não precisamos de perguntar de «que» dois estamos a falar, e é por isso que a aritmética «dá à alma um poderoso impulso para a região superior, e a força de raciocinar sobre os próprios números, sem nunca permitir que se introduza nos seus raciocínios números que representem objetos visíveis ou palpáveis» (Rep., VII, 525 d). A ciência dos números tem portanto o eminente mérito de nos arrancar à esfera do devir (ibid., 525 b) para nos levar à essência, visto que os matemáticos «falam de números que só podemos apreender com o pensamento e que não podemos manejar de modo algum» (ibid., 526 b).

Aquilo que acabamos de dizer acerca da aritmética poderia ser dito da geometria ou mesmo da astronomia. A geometria não estuda as figuras enquanto tais, mas sim as realidades às quais aquelas se assemelham e das quais são apenas alusões: «Por exemplo, é sobre o quadrado em si, sobre a diagonal em si (que os matemáticos) raciocinam, e não sobre a diagonal como eles a desenham, e o mesmo se deve dizer das outras figuras. Todas essas figuras que eles desenham ou modelam, que têm sombras e produzem imagens na água, utilizam-nas como se fossem também imagens, para poder ver esses objetos superiores que só se veem com o pensamento» (ibid., 510 d). Deste modo, «a ciência não tem nada de sensível» (529 o); a geometria não estuda nem aquilo que nasce, nem aquilo que morre, é «o conhecimento daquilo que é sempre» (tou gar aei ontos e geometrike gnosis estin, 527 b) (Acerca da matemática em Platão, cf. Teão de Esmirna, Exposition des connaissances mathématiques utiles pour la lecture de Platon, trad. J. Dupuis, 1892, reed., Brux., 1966; — Ch. Mugler, Platon et la recherche mathématique de son époque — Estrasburgo, 1948).

Muitos são aqueles que felicitaram Platão por esta apologia da matemática e pela fórmula que teria colocado no frontão da sua escola: «Que ninguém aqui entre se não for geômetra.» Mas muitos esqueceram, ou lamentaram, o papel que Platão atribui à matemática e ao seu ensino. Para Platão, efetivamente, a matemática é apenas uma propedêutica (propaideia) (536 d) para a filosofia, não tem valor em si pois é apenas o «prelúdio da canção que se deve aprender» (531 d). A canção é aquela que a dialética executa.