A maioria dos contraditares de Sócrates são sofistas; professores de eloquência, ensinam aos jovens ricos a arte de falar de modo verosímil acerca de todas as coisas para além de qualquer consideração de convicção pessoal e de respeito pela verdade. Pode dizer-se que o pensamento de Sócrates e o de Platão são sobretudo dirigidos contra os sofistas e que as ideias destes últimos estão ligadas à ideia mestra de Protágoras: «O homem é a medida de todas as coisas.»
O sofista Protágoras era provavelmente discípulo afastado de Heráclito, célebre pela sua filosofia do porvir e por essa visão trágica de um mundo em que «tudo se escoa» e no qual os contrários estão em luta permanente, permitindo afirmar que «o combate é o pai de todas as coisas». Desta filosofia do porvir, Protágoras retira uma lição de relativismo: existe um mobilismo universal que permite dizer: «Um em si e por si nada é; nada existe que possamos denominar ou qualificar com justeza.» (Teeteto, 152 d) Deste modo a essência das coisas varia segundo o indivíduo: «Assim me parecem as coisas, assim elas são para mim, assim te parecem, assim são para ti» (Crátilo, 386 a); por isso toda a «sabedoria» de Protágoras se pode resumir na célebre fórmula: «O homem é a medida de todas as coisas; para aquelas que são, medida do seu ser; para aquelas que não são, medida do seu não-ser.» (Teeteto, 152 a) Deste modo, falar de Verdadeiro em si, de Belo em si, não tem sentido, visto que tudo é relativo ao homem, ou seja, ao indivíduo1.
Por isso não é de admirar se noutro sofista, Górgias, o relativismo de Protágoras se prolonga numa espécie de niilismo céptico, ao afirmar: «Nada existe. Se algo existe esse algo é incognoscível. Se se pode conhecê-lo não se pode comunicar esse saber a ninguém.» Aquilo que é, são portanto aparências e não realidades, e todo o indivíduo deve aprender a arte de impor aos outros as aparências que lhe sejam úteis numa dada altura. Essa arte é a retórica de que Górgias é o pai.
Assim, se o homem, ou seja, o indivíduo, é a medida de todas as coisas, não existe no fundo medida, pois nada mede os homens ou lhes confere uma medida. Não admira, portanto, que se encontrem sofistas fazendo a apologia da força, da violência e da desmedida. Desta maneira, Cálicles considera: «O sinal do justo é a dominação do poderoso sobre o fraco e a sua admitida superioridade» (Górgias, 483 d); para ele «mais poderosos», «mais fortes» e «melhores» são sinônimos (Ibid., 488 c) e é preferível cometer a injustiça do que sofrê-la. Trasímaco afirma igualmente: «Mantenho, eu, que a justiça não é mais que o interesse do mais forte.» (Rep. I, 338 c)
A fórmula de Protágoras coloca-nos portanto numa situação próxima daquela em que nos poria a fórmula de Nietzsche: «Deus morreu»; mas enquanto esta pode servir, eventualmente, de ponto de partida para uma filosofia humanista da liberdade que afirmasse que a Verdade é uma norma humana elaborada pelos homens e para eles, aquela retira-nos possibilidade de recorrer a uma unidade, visto que o «homem» de que fala não é o Homem genérico, mas sim o homem enquanto indivíduo. Se o homem é a medida de todas as coisas, as palavras Verdade, Bem e Justiça já não fazem sentido, a condenação de Sócrates é possível, e também, com ela, a da existência da Cidade.
Onde encontrar então a unidade que permita medir todas as coisas? Será que esta poderia ser encontrada na própria estrutura das coisas? Os atomistas responderiam de bom grado pela afirmativa e os discípulos de Leucipo e de Demócrito consideram o átomo como unidade elementar a partir da qual tudo pode ser explicado: «Em elementos finitos dividem e de elementos finitos recompõem.» (Sofista, 252 b) Assim, no Fédon2, Símias compara a alma humana a uma harmonia que seria apenas o produto dos diferentes elementos que a constituem e, portanto, «de cada vez que o nosso corpo seja tendido ou distendido exageradamente por doenças ou outros males, é necessário que a alma seja também ela destruída apesar de ser aquilo que de mais divino existe (…), enquanto, pelo contrário, os restos corporais do indivíduo resistem durante bastante tempo, até ao dia em que acabarão destruídos pelo fogo ou pela putrefação» (Fédon, 86 c). Mas este ponto de vista é ainda especioso pois o elemento não dá conta de nenhuma unidade que não pressuponha; por exemplo, um carro de combate não é um conjunto de parafusos, de tábuas, etc, aquilo que faz o carro de combate é a sua essência (ousia), ou seja, a unidade que foi dada a todas as peças que o compõem mas que não nasce delas (Cf. Teeteto, 207 a).
Não é, portanto, nos elementos das coisas que iremos encontrar a unidade que buscamos. Sócrates diz-nos que por um momento pensou que Anaxágoras ia dar-lhe aquilo que ele procurava: «Eis que um dia ouço uma leitura de um livro que era, diziam, de Anaxágoras e onde se tinha esta linguagem: ‘Foi afinal o Espírito (nous) que tudo ordenou, é ele que é a causa de todas as coisas.’ Tal causa alegrou-me; pareceu-me que havia, num certo sentido, uma vantagem em fazer do espírito uma causa universal: se assim for, pensei, esse Espírito ordenador, que justamente realiza a ordem universal, deve igualmente dispor cada coisa em particular da melhor maneira possível.» (Fédon, 98 a) Mas depois de ter lido o livro de Anaxágoras, Sócrates vê voar as suas esperanças; Anaxágoras não tira qualquer partido desse Espírito que invocou, fala-nos das ações da água, do ar, do éter, mas é incapaz de explicar o porquê das coisas. «Pareceu-me que o caso dele era igual ao de uma pessoa que, depois de ter dito que em todos os seus atos Sócrates age com o seu espírito, propondo-se em seguida expor as causas de cada um dos meus atos, os apresentasse deste modo: ‘Porquê, antes de tudo, estou sentado neste lugar? É porque o meu corpo é feito de ossos e de músculos; que os ossos são sólidos e possuem dobras que os separam uns dos outros, enquanto os músculos, cuja propriedade é a de se tenderem e distenderem, envolvem os ossos com as carnes e a pele que mantém o todo; por efeito da oscilação dos ossos nos seus encaixes, a distensão e a tensão permitem-me, por exemplo, dobrar agora estes membros; e eis a causa em virtude da qual, dobrado desta maneira, estou sentado neste lugar!’» (Ibid., 98 c) Um tal discurso deixa portanto completamente de lado as verdadeiras causas pelas quais Sócrates está sentado na sua prisão, «ora ei-las: visto que os Atenienses acharam preferível condenar-me, por essa precisa razão, eu julguei melhor estar sentado neste lugar, ou seja, mais justo sofrer, ficando onde estava, a pena que me infligiram». É portanto necessário distinguir, coisa que Anaxágoras nunca faz, aquilo que é realmente causa (to aition to onti) por um lado, e aquilo sem o que essa causa nunca seria causa (ekeino aneu ou aition ouk an pot ein aition) por outro.
Desta maneira estamos sempre numa jangada à deriva; para empreender a grande travessia da vida (Ibid., 85 d), falta-nos sempre a unidade de medida; a navegação que seguimos longe do deus, ou seja, do Bem, levou-nos a dizer que cada homem era a medida de todas as coisas, o mestre da sua navegação, mas essa navegação não nos levou a parte nenhuma. O homem perdeu, portanto, todas as medidas, age mal e não compreende, apesar de ter afirmado que era a medida de todas as coisas. Temos, portanto que mudar a navegação, tomar ton deuteron ploun (Ibid., 99 d) de modo a encontrar uma verdadeira ciência da medida, uma «metrética» da justa medida. Para a descobrir é necessário operar dentro de nós uma verdadeira «conversão» (periagoge),(Rep., VII, 518 d) que nos permita compreender que «a divindade deve ser a medida de todas as coisas, num grau supremo, e muito mais, penso eu, do que o é, segundo pretendem, o homem» (Leis, IV, 716 c); pois o Bem não é uma medida que varie segundo o indivíduo, o Bem é aquilo que coloca a unidade entre os seres e que substitui uma multiplicidade geradora de discórdia por uma unidade que permite o amor; por isso, segundo Aristóxeno de Tarento, Platão afirmava: «O Bem é o Uno.»
Untersteiner (I Sofisti, Turim, 1949) (trad. ingl. 1954) tentou reabilitar os sofistas dizendo que quiseram fazer do homem o organizador de toda a experiência. ↩
Fédon, 85 c. Bumet vê na teoria de Símias a recordação de uma teoria pitagórica; Franck e J. Moreau veem, com mais justeza, uma concepção atomista (cf. J. Moreau, La construction de l’idéalisme platonicien, pp. 374-375). ↩