A Divindade que fala a Parmênides diz-lhe:
«Vem agora, vou-te dizer — e tu presta atenção às minhas palavras e guarda-as em ti mesmo — as duas únicas vias de procura que se podem conceber. A primeira, a saber, que o ser é e que é impossível para ele não ser, é a via na qual se deve confiar, pois segue a Verdade. A segunda, a saber, que o ser não é e que o não-ser é necessário, esta via, eu to digo, é um caminho onde não se encontra nada em que se possa confiar.» (fgt. 11)
Parmênides fala, portanto, explicitamente de duas vias: a via da verdade, que diz como o ser é, e que é impossível que ele não Seja; a segunda, que diz que o ser não é e que o não-ser é necessário, via que não oferece qualquer saída.
Os intérpretes tradicionais (o que não quer dizer que sejam os menos perspicazes) dizem que não havia outro meio paia Parmênides de se recusar a pensar o não-ser senão afirmar que não se deve pensar nele. Mas, na Introdução à Metafísica, Heidegger pretende que, afinal, dizendo que não é preciso pensar o não-ser, Parmênides pensa-o e eleva, assim, o pensamento do não-ser a uma espécie de conhecimento. Para Heidegger, devemos ter um conhecimento desta via intacta, que não podemos pisar, nisto, que ela conduz ao não-ser. Eis, segundo Heidegger, o mais antigo ensinamento da filosofia acerca do facto de que, ao mesmo tempo que a via do Ser, a via do Nada deve ser pensada e, sempre segundo Heidegger, ignora-se tudo na questão do Ser, quando se diz que o Nada não é nada. Por mais interessante que seja, esta interpretação é discutível, mas tem o mérito de nos esclarecer sobre o pensamento do próprio Heidegger.
Um outro problema se pôs aos comentadores de Parmênides: não haveria ali lugar para uma terceira via? Na segunda parte do poema (i.é, a partir de VIII, 50), trata da via da opinião e tudo é apresentado sob a categoria da dualidade:
«Aqui ponho fim ao meu discurso digno de fé e à minha consideração que abarca a verdade», prossegue a Divindade, que acaba de falar da via do Ser, «aprende, a partir daqui, o que os mortais têm em vista, e presta atenção à ordem enganadora das minhas palavras. Os mortais têm, com efeito, dado a sua confiança à nomeação de duas formas, uma das quais não deveriam nomear, e é neste ponto que eles se afastam da verdade. Julgaram-nas opostas quanto à forma e deram-lhes sinais diferentes uns dos outros». É por isso que os homens pensam que todas as coisas estão cheias ao mesmo tempo de Luz e Treva.
Parece, pois, que nos encontramos perante uma terceira via, a da opinião, que não seria nem a via do Ser nem a do Não-Ser. Para numerosos comentadores, por exemplo Jean Wahl, esta terceira via seria apenas uma variante da segunda1 e seria, de qualquer modo, a via do erro. Para Nietzsche, esta segunda parte do poema corresponderia a uma primeira filosofia de Parmênides, próxima de Anaximandro. Zeller e Gompers pensam que nos encontramos em face de um desenvolvimento no qual Parmênides nos dá conhecimento do que seria a sua compreensão do mundo, se adotasse o ponto de vista do senso comum. Para Diels, tratar-se-ia da exposição de uma teoria que Parmênides criticaria, a de Heráclito, que pertenceria ao número dos pensadores bicéfalos de que se fala em VI, 5. Burnet pensa que Parmênides visa antes os pitagóricos. Uma interpretação original e que fez época na história do eleatismo é a de Karl Reinhardt2, que recusa as leituras precedentes e faz da opinião o resultado de uma queda original. Daí viriam os erros das nossas representações, de que poderíamos isentar-nos contemplando a verdade.
Heidegger insiste na importância da interpretação de Reinhardt3, o qual, em seu entender, compreendeu e resolveu o problema tão debatido da relação entre as duas partes do poema de Parmênides. Mas não teria posto em evidência o fundamento ontológico e a necessidade da relação entre a Verdade e a Opinião. Na Introdução à Metafísica4, Heidegger retoma o problema e pretende que a via da opinião seria completamente diferente da segunda e constituiria uma terceira via, a do aparecer, que seria tudo menos a aparência. Esta via seria a do aparecer, enquanto via do ente que aparece de tal ou tal ponto de vista, seria a via dos pontos de vista, a via do aparecer, experimentado como pertença do Ser. Tal aparecer não seria mais que a Natureza, enquanto manifestação e eclosão do Ser. E pode afirmar-se do aparecer que pertence e não pertence ao Ser, porque, para Heidegger, o pensamento de Parmênides não seria afastado do pensamento de Heráclito, para quem «a natureza gosta de se esconder». Por conseguinte, ainda segundo Heidegger, o homem que verdadeiramente sabe seria aquele que percorre as três vias: a do Ser, a do Não-Ser e a do Aparecer. Importaria finalmente unir as três vias numa espécie de operação nietzschiana ou hegeliana.
Ainda aqui podemos dizer que Heidegger interpreta Parmênides em função das suas preocupações filosóficas e procura ver nele um dos seus precursores. Seja como for, atenta a ambiguidade de muitas passagens do texto de Parmênides e o estado mutilado em que nos chegou o poema, talvez não se possa fazer melhor que meditar nas reflexões que pôde sugerir a quantos o leram.
J. WAHL, Vers la fin de l’ontologie, Paris, 1956, p. 119; esta obra é um estudo crítico da Introdução à Metafísica, de HEIDEGGER. ↩
Karl REINHARDT, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie, Bona, 1916. ↩
HEIDEGGER, L’être et le temps, trad. franc. de R. Bohem e de Waelhens, Paris, 1964, p. 268, n. 1. ↩
P. 124; seguimos as análises de J. WAHL na obra já citada. ↩