Platão: Mito da Natureza da Alma

3. A natureza da alma. — O Fedro, acabamos de o ver, comparou a alma com um carro alado, com um cocheiro e dois cavalos; uma passagem do texto, que segue de perto tanto este como a narrativa do episódio da queda, traz-nos pormenores acerca desse carro. O primeiro dos cavalos (cf. 253 d e seg.) é um cavalo branco de olhos pretos, é belo e forte, ama a prudência (sophrosyne) e a moderação (aidos); companheiro da opinião verdadeira, não precisa de ser batido para ser conduzido, a palavra de encorajamento é suficiente para ele. Ao contrário, o outro cavalo é preto com olhos cinzentos, é mal feito, é um companheiro da desmesura e da vaidade; para o conduzir, o cocheiro (hybris) tem de lhe dar pancadas com um chicote de pontas. Assim, a alma humana é puxada ao mesmo tempo pelo cavalo branco, que a dirige no caminho do equilíbrio, da medida e da verdade, e é sacudida pelo cavalo rebelde, que simboliza as paixões humanas, fontes de injustiça e de desordem.

A alma humana não é, portanto, simples, tem consigo a marca da complexidade do homem. É isso que testemunham dois outros textos de Platão (Timeu, 69 c, e República, 436 c) que distinguem três partes na alma humana, as duas primeiras mortais, a terceira imortal.

A primeira parte da alma é a concupiscência (epithymia); é dela que dependem os apetites inferiores: fome, sede, desejo sexual; reside no baixo-ventre e o seu princípio é a falta de razão e o desejo. A sua virtude é a temperança (sophia).

O coração (thymos) é a segunda parte da alma mortal, é dele que vêm as paixões; tem o seu lugar no diafragma, o seu princípio é a cólera (orge) e a sua virtude a coragem (andreia). Essa cólera pode ser aliada da razão quando refreia os desejos, como Platão nos mostra com a personagem de Leonte que sentiu o desejo de ver os cadáveres dos supliciados, lutou contra esse movimento, acabou por lhe ceder e correu para os mortos invetivando os seus próprios olhos: «Tomem, infelizes, gozem deste belo espetáculo» (440 a).

O espírito (noûs) é a única parte da alma que é imortal, tem a sua residência na cabeça, o seu princípio é a razão e a sua virtude a prudência (sophrosyne).

A virtude, que no indivíduo assegura o seu papel a cada uma das três partes da alma, é a justiça (dikaiosyne).

Esta divisão tripartida da alma não tem apenas um alcance psicológico e ético, tem também um alcance sociológico, assim como teremos ocasião de ver ao estudar as ideias políticas de Platão; efetivamente, «estão na alma do indivíduo as mesmas partes e em mesmo número do que no Estado» (República, IV, 441 c). Para Platão, a cidade ideal tem de possuir três classes de cidadãos que correspondam às três partes da alma, e assim como a justiça no indivíduo atribui o seu papel a cada uma das suas partes, do mesmo modo a justiça social consiste na manutenção das três classes da cidade no seu lugar respetivo de modo que nenhuma vá apossar-se das funções das outras.