a) O mito do inferno no «Górgias» (523 a e seg.): Na época de Crono e no início do reino de Zeus eram os próprios vivos que julgavam os vivos antes da sua morte e davam a sua sentença no dia em que estes morressem. Mas os juízos eram mal dados e as ilhas Afortunadas estavam cheias de homens que não deveriam lá estar. Zeus decidiu então mudar de processo; retirou primeiro aos homens o conhecimento da hora da sua morte; para além disso, estes foram julgados nus e depois da sua morte para não impressionar os juízes pela riqueza das suas roupas e a pompa da cerimônia fúnebre; por fim, já não foram os homens que julgaram, mas sim juízes nus e mortos: Minos, Éace e Radamante. As almas assim julgadas são castigadas de maneira a tornarem-se melhores ou, se forem incuráveis, de maneira a servir de exemplo para os outros. Então, a partir deste mito, Sócrates critica a posição de Cálicles, que afirma que a lei do mais forte é sempre a melhor e que é preferível cometer a injustiça do que sofrê-la: «Por mim, Cálicles, dou fé a essas histórias, e aplico-me em fazer de modo a apresentar ao juiz uma alma tão sã quanto possível. Desdenhando as honrarias apreciadas pela maioria, quero esforçar-me, através da busca da verdade, em tornar-me o mais perfeito possível em vida e, quando chegar a hora de morrer, na morte» (526 de). Daí a conclusão do Górgias: «Devemos evitar com mais cuidado cometer a injustiça do que sofrê-la» (527 b).
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