Caeiro (Arete:241) – a presença do desejo

[…] O fluxo do desejo abate-se sobre nós. Ficamos-lhe expostos. À sua disposição. Há uma falta que se faz sentir e que nos interpela. O que está em falta é prazer (ἡδονή). A exposição à vontade de prazer (ἐπιθυμία) quer dizer exposição à falta de prazer (ἡδονή). A vontade de prazer (ἐπιθυμία) potencia a possibilidade de contrairmos prazer. Mas o fenômeno do desejo detém uma outra característica absolutamente problemática. Mesmo que se produza «o preenchimento da falta» que se faz sentir, isto é, mesmo que a exultação (ἡδονή) se concretize, o que acontece é que no momento seguinte a essa concretização, o que por ela se obteve perde-se irrecuperavelmente, cai no esquecimento. Tudo é falta de crença. Insaciabilidade. «O preenchimento da falta» (πλήρωσις τής ἐνδειας) do desejo não se dá de uma vez por todas. A lógica do acontecimento do desejo requer sempre intensificação e a sua repetição até ao infinito. Expor-se a este processo é para Cálicles [personagem no diálogo Górgias de Platão] excelência (ἀρετή).

A presença do desejo, que se experimenta na força da sua correnteza, leva-nos a sentir a presença daquilo que desejamos ter na sua ausência. É com saudade do prazer ausente que nos lançamos na sua direção. De cada vez, no entanto, que se obtém prazer, essa concretização não é um ganho permanente na nossa existência. O prazer sente-se de fugida. Numa fuga permanente. E nestes pontos-limite: a sua entrada, o seu preenchimento e a sua perda imediata, que encontramos a caracterização da situação do desejo, a sua lógica. Nós vivemos entre o «fluir» e o «escoar». Quanto maior for o seu fluxo, assim também é o seu escoamento. É no preencher da falta que o prazer se faz sentir. É no passar por esse momento e na repetição constante desse momento de prazer que, para Cálicles, consiste a vida feliz. Quanto mais vezes se fizer sentir a falta, tanto mais vezes sentimos o prazer e o regozijo do seu preenchimento, tanto mais, portanto, é a felicidade sentida.

[CAEIRO, António de Castro. A arete como possibilidade extrema do humano. Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002]