É esta a compreensão que dá inteligibilidade à situação concreta de Sócrates. A ela não temos acesso através da mera descrição do que vemos de uma forma objectiva, por mais pormenorizada e exaustiva que ela seja, procurando inclusivamente referir os horizontes internos de cada coisa. Esta descrição objectiva da situação está orientada para o escrutínio de coisas que se veem, mas chamar a coisas deste gênero causas responsáveis pelas situações que se criam e por que passamos é bastante absurdo .
É verdade que sem ter coisas deste gênero , como o corpo e aquilo que o compõe, «ossos», «tendões», «articulações», não era possível fazer-se tudo aquilo que nos parece que tenha de ser feito . Porém, aquilo que se faz resulta de uma escolha (airesis) do melhor que há . É esta escolha que nos leva a «fazer pelo sentido compreensivo (noûs) aquelas coisas que se fazem» . Ou seja, a determinação da causa responsável (aitia) de uma determinada situação (praxis) resulta não da enunciação das condições necessárias, instrumentais, se assim se quiser dizer, para a sua realização, mas do verdadeiro fundamento, o qual, ao ser tido em vista, constitui e determina as próprias condições necessárias para a realização do que há a fazer. É o plano que dá compreensão à situação em que se está, daquilo por que se passa (paschei) e daquilo que se faz (poiei), daquilo que se é (esti), que nos localiza na vida.
Por isso, é necessário estabelecer a diferença entre «o verdadeiro fundamento» e «aquilo sem o que o fundamento não podia ser fundamento» . Esta diferença entre o plano em que eclode o sentido que dá compreensão a uma determinada situação (praxis) é trazido à expressão, formalmente, como sendo o bem (agathon) melhor, melhor de tudo (beltion, beltiston). É a abertura para o bem (agathon), uma abertura que tem o carácter de uma escolha (airesis), o que nos permite dar compreensão ao fundamento a partir do qual se obtém inteligibilidade para aquilo por que se passa, isto é, o fundamento para determinarmos o sentido daquilo que se passa «objectivamente».
Só tendo em vista esta dissociação fundamental se obtém o horizonte em questão que nos permite levantar a pergunta sobre o sentido responsável pela situação (praxis) humana. O «estar agora sentado aqui» é uma expressão que enuncia o que se passa objectivamente. É o que há de comum em todas as mais diversas situações, válido objectivamente para todas elas. Para estarmos sentados é necessário termos um corpo com as características naturais que nos permitam sentarmo-nos com ele em determinados sítios. Mas, por mais pormenorizada que seja a descrição do que se passa objectivamente, nós não conseguimos produzir nenhuma abertura para o sentido que anima e dá compreensão a todas essas situações. Cada uma delas está inserida no plano universal da vida, corresponde a «escolhas» de sentidos diferentes. São essas escolhas que de cada vez nos permitem dar inteligibilidade a diferentes situações, situações completamente heterogêneas e impermeáveis umas às outras, mesmo quando objectivamente se vê e descreve uma e a mesma «coisa».
O plano da causa responsável (aitia), consignado no termo «sentido compreensivo» (noûs), é o que nos permite perceber o que é que ordena (diakosmei) as nossas situações (pragmata). A escolha (airesis) do bem (agathon) melhor, melhor de tudo (beltion, beltiston) é o que nos permite uma abertura ao plano de sentido que articula tudo aquilo que vemos objectivamente. É o sentido compreensivo (noûs) que tem de ser tido em vista (skopei), porquanto é por ele (hypo nou) que tudo é organizado. Isto é, se recuperarmos a fórmula do Gorgias, a organização (taxis) que constitui intrinsecamente cada situação não pode ser dada por aquilo que objectivamente acontece nem mesmo quando procuramos fazer um acompanhamento exaustivo, escrutinando e recenseando tudo aquilo que está dado a ver. A explicitação de tudo por quanto se passa tem antes de ser procurada num plano irredutível ao facto constituído no mundo, um plano que está numa dimensão não coisal.
É nesta constelação de problemas que se pode levantar a questão de saber como é que se pode ter um acesso autêntico ao sentido das mais diversas situações por que se passa. Ou seja, se no plano neutral «dos entes naturais» (physei onta) há uma dificuldade em anular () o ponto de vista mimético a partir do qual lhes acedemos, maior será ela no plano da situação humana (praxis) por maioria de razão, sendo aqui a ambiguidade levada ao extremo. Podemos também não perceber se o acesso que temos ao bem (agathon) de cada situação é um acesso autêntico ou meramente mimético. Pode ser que não tenhamos um acesso ao modo como é o ser de cada situação, mas tão-somente ao modo como nos parece que as coisas são. Como podemos ter acesso à organização (taxis) e à excelência (arete) de cada situação?