Caeiro (Arete:87-90) – lype

Para percebermos a diferença radical que há entre o modo como um acontecimento se processa na vida e o modo como esse acontecimento é «visto» pela reprodução imitadora (mimesis), consideremos primeiramente uma situação que nos afecte, deprimindo-nos.

Quando passamos por uma situação que é qualificada como sendo deprimente (lype), produz-se uma dependência do desenvolvimento da vida desse pathos (pathos) presente. Deixamo-nos arrastar e dominar pela situação criada. Ficamos sem qualquer distanciamento ou domínio sobre ela, como que mergulhados na mais profunda das depressões, sem poder emergir de novo à tona da vida. Ao gerar-se um estado de aflição dá-se o impedimento à possibilidade de resolver de um modo deliberado a situação em que nos encontramos . O comportamento que sucumbe à depressão (lype) faz que sejamos levados constantemente «para as lembranças que nos recordam o que nos afectou e para lamentações» que, por mais intensas e repetidas que sejam, são sempre poucas . A depressão que nos assola aloja-se na existência, infectando-a em todas as dimensões temporais e espaciais pelas quais ela se propaga. Os outros, o mundo, o tempo passado e o futuro, o espaço em que somos e aquele em que não habitamos, tudo é mergulhado nesse estado presente que tudo afecta.

Este comportamento relativamente à depressão (lype), um comportamento que enraíza na natureza humana, pode, no entanto, ser visto como «não tendo sentido e ser resultante de uma forma de inactividade com a tendência para a falta de perseverança inconstante» . Fica-se de tal forma tolhido que não se consegue «ir em frente» para um futuro que permanece aparentemente paralisado pelo presente. Quando nos encontramos em situações adversas que nos afligem e que suportamos com dificuldade , ficamos no adiamento aparentemente eterno de uma nova qualidade do instante que nos rasgue um novo e melhor futuro sem aflição, aflição que não nos permite nenhuma espécie de abertura para deliberarmos acerca do que se constitui. Não se acha sentido para o que nos está a acontecer, nem se encontra nenhuma orientação que nos permita esboçar uma reação, qualquer que ela seja. Neste estado de coisas ficamos sem uma dilucidação do que está a acontecer, ou do que aconteceu .

É a partir da tematização de esta forma de afectação nos acontecer, em contraposição ao modo como por natureza nos comportamos relativamente a ela , que se levanta a hipótese de haver uma possibilidade de «reação» a toda e qualquer forma de afectação patológica em geral, e, neste caso especial, a toda e qualquer forma de sofrimento. A tematização do sofrimento constitui uma forma de olhar que não se encontra no estado patológico. É já uma reação que procura oferecer resistência à situação aflitiva em que nos encontramos, para que não nos deixemos sucumbir ao sofrimento que nos tolhe. O ter em vista o pathos não implica necessariamente uma alteração do aspecto essencial do sofrimento (lype) ou afectação (pathos), mas altera, de todo em todo, o modo com se dá o contacto entre esses acontecimentos e a nossa vida. O ter em vista teoricamente a afectação (pathos) é uma forma de anular o efeito que ele surte espontaneamente sobre nós e abre uma possibilidade à transformação do modo como o acolhemos.

A transformação do modo como acolhemos a afectação (pathos) constitui um outro espaço de manobra que nos permite oferecer-lhe resistência, reagindo ao que faz surtir o seu efeito sobre nós . Segundo esta segunda possibilidade, há o poder de combater e de resistir ao sofrimento. Esta outra possibilidade é dada pela compreensão (logos). Ela contrapõe-se à única possibilidade aparente de sermos arrastados para e pelo sofrimento . A possibilidade de se dar uma resolução deliberada (bouleusis) é dada pela abertura para o futuro (prosthen) e pela alienação relativamente ao sucedido (gegonos). Esta dupla possibilidade de relacionamento apurada — por um lado, de abertura ao futuro e, por outro, de fechamento à aflição — resulta já do empreendimento de perseguir o sentido (logos) . Não se trata de uma abertura e de uma desafectação que se constituam assim sem mais nem menos, mas implica já «esforço» de seguir o que o cálculo (logismos) delineia . O sentido (logos) dá uma regra (nomos) ao modo como a experiência patológica vem ao nosso encontro e como parece acontecer contra nós. Faz ver numa unidade de sentido o que de cada vez assim nos sucede. O sentido (logos) indica o que nos está a acontecer e indica uma outra possibilidade arrancada ao caos desordenado que a depressão (lype) traz consigo.

Identificadas estas duas formas de relacionamento com a depressão (lype), percebemos que a reprodução (mimesis) tem em vista, no horizonte das situações (pragmata) humanas, aquelas situações que resultam de um comportamento que sucumbe à afectação (pathos) e a respectiva forma de reação. Quer dizer, a perícia imitadora das situações humanas (praxeis) constitui-se fazendo uma abstração necessária da possibilidade de estabelecimento de um comportamento que «mantém a tranquilidade» . Um pendor desta natureza acontece porque só a disposição para um comportamento colérico (to aganaktetikon) dá azo a uma reprodução (mimesis) múltipla e variegada . A disposição do comportamento «sensato e tranquilo», uma vez que permanece quase sempre na mesma forma de ser relativamente a si próprio , não é nem facilmente imitável, nem é, uma vez imitado, susceptível de uma fácil compreensão . Sobretudo por uma assembleia de homens de toda a espécie (pantodapoi), reunidos num teatro. Uma «representação» desse tipo de disposição corresponderia à apresentação de uma possibilidade de afectação que lhes é de todo em todo estranha . O poeta reprodutor (mimetikos poietes) não tem em vista nem se move nesta possibilidade humana, mas tem, antes, em vista aquela disposição para um comportamento colérico e um carácter variegado, dada a susceptibilidade de uma boa «imitação» .

CAEIRO, A. A Areté como possibilidade extrema do humano. Lisboa: INCM, 2002.