Caeiro (Arete:90-91) – poietike

«O poeta faz nascer uma má constituição na existência particular de cada um» . Como resultado desta má constituição (kake politeia), os melhores podem ser pervertidos . Esta «perversão» e «distorção» das situações (praxeis) humanas podem resultar da atenção prestada aos poetas. É o que acontece quando procuram representar a situação aflitiva em que se encontra qualquer um dos heróis, e a circunstância em que ele se encontra, quando se está a queixar do que lhe sucedeu . O que nessa altura se passa, de uma forma extraordinária, é que nos regozijamos e nos abandonamos a eles, seguindo o que se passa com compaixão e avidez. Então, achamos que o poeta que nos deixa assim dispostos de uma forma extrema (malista) é bom .

A representação mimética das acções humanas cria uma situação absolutamente paradoxal. As situações aflitivas que levam a lamentos pesarosos e a um sofrimento agudo fazem que nos regozijemos, que nos abandonemos a esse espectáculo e o gozemos, sentindo um prazer intenso. O sofrimento «reproduzido mimeticamente» dá prazer. Ou seja, o sentido da situação em que se encontra alguém que sofre não é só percebido à distância. Por essa «distância mimética» dá-se uma perturbação tal que o sentido da situação é completamente distorcido .

A distância a que nos encontramos da situação é quase inultrapassável. Se, quando a situação de depressão (lype) nos sucede a nós, há uma enorme dificuldade em sabermos de que modo nos devemos e podemos comportar, ora abandonando-nos ao pathos, ora mantendo a calma, essa dificuldade é então acrescida, quando tomamos em consideração aquilo que acontece não a nós mas a um outro. Isto é, se, «quando um cuidado e preocupação particulares nos sucedem a cada um de nós, fingimos que é o contrário que se passa, e tentamos passar bem, dominar o sucedido, achando que é esta a forma de comportamento corajosa e a outra [sc., a que se abandona ao sofrimento] efeminada»; se achamos mais valorosa a disposição da tranquilidade, relativamente às situações adversas por que passamos, do que o lamento queixoso, como é, então, sentirmos uma forma de prazer (hedone) ao ver «outro» nessa situação?

CAEIRO, A. A Areté como possibilidade extrema do humano. Lisboa: INCM, 2002.