Caeiro: kakia

Excertos de CAEIRO, António. A Areté como possibilidade exterma do humano. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p. 275-276.

O acontecimento deformador e desfigurador da perversão (κακία, kakia) leva, como vimos, a uma afectação global do sentido da existência humana. Essa crise de sentido experimentada como desorganização (άταξία, ataxia) e desordem (άκοσμία, akosmia) não fica apenas circunscrita ao horizonte da lucidez (ψυχή, psyche) mas alastra à totalidade dos entes, mergulhando-os no caos. Nada permanece intocável. Tudo é excentração extravagante e dispersão. Essa situação resulta da deformação desvirtuadora das possibilidades dadas à partida na existência humana, fazendo que a totalidade dos entes no seu todoPese embora o facto de, noutros domínios de ser, se poder dar a presença de uma desvirtuação que só destrói esse âmbito específico de sentido. Por exemplo, o facto de uma casa ser inabitável, de uma faca cortar mal, não aponta por si só para um prejuízo que nos arruine a existência. seja experimentada como uma desorganização intrínseca da sua ordem constitutiva.

A perversão (κακία) que afecta especificamente a lucidez (ψυχή) é experimentada como perda da organização (τάξις, taxis) e da ordem (κοσμία, kosmia), isto é, como esboroamento das condições sine qua non a partir das quais o humano pode apropriar-se de uma forma autêntica das suas possibilidades de vida. Se a perda da potencialidade de um instrumento, de um artefacto ou de uma árvore não levam a uma desorganização da totalidade dos entes no seu todo, por outro lado, a presença da perversão (κακία) na lucidez (ψυχή) humana conduz a uma perturbação no modo como a totalidade dos entes é habitualmente experimentada, sendo a lucidez (ψυχή) a forma onde radicam todas as formas de abertura aos entes em geral. A perturbação da relação (275) estrutural entre o humano e todos os demais entes no seu todo é provocada pela modificação da lucidez (ψυχή) levada a cabo pela perversão (κακία).

Mas podemos ser mais específicos. A perversão (κακία) que afecta a lucidez (ψυχή) no seu todo e os restantes entes é concretizada como um impedimento estrutural à compreensão do sentido do horizonte da situação humana (πραξις, praxis), enquanto núcleo de sentido onde radica a existência humana, isto é, o plano fundamental que dá compreensão aos entes no seu todo. É assim pela perda da «excelência humana» (ανθρώπινη άρετή, anthropine arete) e não pela perda da «excelência específica de cada coisa» (αρετή έκάστου, arete ekastou), que todos os entes sem excepção mergulham na «impossibilidade da comunhão» (Gór., 507e5) que mantém em conjunto (Cf. Gór., 508a1) tudo em geral. A organização (τάξις) e a ordenação (κοσμία) dão lugar à desorganização (άταξία, ataxia) e à desordem (άκοσμία).